Há várias razões que levam uma boa voz da folk ou da country norte-americanas a mexer com os ouvidos que lhe dão atenção. Seguem aqui alguns exemplos:
Aquela vontade de um dia andar a cavalo como fazem as pessoas que de facto andam a cavalo. Nem que seja uma vez na vida, nem que seja por causa daqueles últimos três copos a mais, chegará o momento em que vamos desejar saber e poder fazê-lo rumo a um horizonte danado de cinematográfico. Tem a ver com liberdade, sonho e nenhum traço de destino pela frente. E esta música é a banda sonora perfeita para imaginarmos essa maravilha.
Os tais copos: virar um após o outro e aguentar a destilação sem deixar o orgulho ficar ferido. Ultrapassar a situação e sobreviver para contar, ser o rei da noite mesmo que de manhã não nos lembremos de nada, quem me dera, quem nos dera ter uma história para contar.
Usar ganga de acordo com o propósito que lhe deu origem. Tecido para gente que trabalha e que dá o corpo à terra e ao ferro. Fora a pinta que tudo isto junto dá.
Uma guitarra bem tocada e uma voz bem bebida levam qualquer um a pensar em coisas destas, nem que seja por causa de filmes a mais (se é pecado, é um dos que vale a pena). Mas com Colter Wall, a coisa pia de outra maneira. E sobretudo porque se há coisa que este canadiano não faz é piar, não senhor. Voz grossa aos 22 anos, mas com uma roquidão que parece ser prima direita de Johnny Cash, daquelas que fumam e bebem à séria desde que foi possível chegar à garrafa.
Ainda assim, e apesar deste vozeirão que surpreende qualquer um, não é só a laringe forrada a gravilha que amplifica o efeito deste disco. Não é só a simbologia, a coolness do cigarro que não apaga. O pacote completo é uma enorme mais valia para o senhor que ora toca com banda ora se apresenta em modo one man band, com um bombo nos pés. Mas é só mais um elemento. Colter Wall faz mais duas coisas de forma extraordinária. “Duas” parece coisa pouca, mas não é.
A primeira é tocar guitarra como fazem os que — quase que juro aqui — nasceram numa manjedoura de seis cordas. Não importa o solo mais arrojado nem o som pioneiro. Importa sim o virtuosismo elegante de quem faz melodia, harmonia e ritmo, tudo ao mesmo tempo, tudo no mesmo dedilhar convicto e nervoso.
A segunda é a maneira como Colter conta as histórias. Porque é isto que o senhor Wall gosta de fazer: contar histórias. Foi assim que a folk e a country nasceram, para acompanhar musicalmente quem narrava contos de amor e desamor, de pobreza e conquista, de luta e resignação ou de crime, morte e sangue, com as chamadas murder ballads.
Colter Wall fez um álbum homónimo em que junta tudo isto e em que a primeira audição descobre todo o eixo que vai de Johnny Cash a Bob Dylan, de Townes Van Zandt até à melancolia solitária de um Tom Waits a vaguear pelos primeiros bares que lhe deram guarida, enquanto nas colunas passam velharias de Merle Haggard e Waylon Jennings, dois dos maiores fora-da-lei que já pegaram numa guitarra.
https://open.spotify.com/album/63o3vkvtW2Cn8QMiuBN1vN
“Thirteen Silver Dollars” e “Trascendent Ramblin’ Railroad Blues” mais aquela ideia romântica de que um comboio pode salvar uma vida, sobretudo quando não se sabe o destino; “Codeine Dream”, “You Look To Yours” e “Bald Butte”, sempre em baixa rotação, num alpendre qualquer de uma terra onde as noites parecem mais quentes que os dias e as memórias são mais suadas que aquilo que os olhos veem a horas certas; “Me and Big Dave” fala da amizade entre cercas que rodeiam o gado, saloons com más companhias e outras coisas boas do género, mas também fala de vidas em risco, de gente que precisa ser salva; “Fraulein” presta vassalagem à tradição, a do romance e a da country; e “Kate McCannon”, com versos que relatam um assassinato apaixonado mas cruel, é perfeita. Simplesmente perfeita.
Mesmo quando parece meio sonhador, Colter Wall canta sobre abuso, perda, sofrimento e solidão. Mesmo quando parece um conjunto de clichés com o chapéu certo, não há nada no artista que não seja verdadeiro e autêntico (incluindo o nome, que é mesmo o dele). É uma alma velha mas isso é um privilégio. Não inventa nada mas seguir as regras também pode ser arriscado, sobretudo em dois mundos onde o preconceito é gigantesco — a juventude e a música country-folk.
Facto: é demasiado fácil ficar preso a gente talentosa e bastante nova que replica de forma perfeita os estereótipos que acumulam décadas de história. É uma coisa meio exótica, é demasiado atraente para não nos roubar a atenção. Mas também isto é um facto: muitos tentam mas poucos são os que fazem a diferença. E se à primeira nota há qualquer coisa em nós que fica preso, é rara a vez em que esse encanto se arrasta ao longo de um álbum inteiro. E com Colter Wall, o músico e o disco, é isso que acontece. Isso e a velha-sempre-nova questão: “Este gajo faz tudo isto só com uma guitarra. E eu, que raio ando eu aqui a fazer?”.