Sete dias e 158 testemunhos depois, ainda continua a ser complicado explicar como foi possível Larry Nassar, uma das figuras com maior notoriedade na ginástica e no próprio desporto dos Estados Unidos, ter conseguido perpetuar mais de 20 anos de abusos sexuais a menores que tinham apenas como sonho de vida chegarem aos Jogos. Mas, como sublinhou a juíza Rosemarie Aquilina no final do último depoimento, feito pela primeira atleta a apresentar queixa e a assumir posição publicamente, “Rachael [Denhollander] não criou um caso, criou um exército de sobreviventes”. E essa acabou por ser a primeira “vitória”, refletida na condenação do médico.

Condenado em dezembro a 60 anos de prisão (com o mínimo de 25 de cadeia efetiva) por posse de pornografia infantil, Nassar, de 54 anos, foi de novo condenado, desta vez a 175 nos de prisão, que começarão nos 40 mas que irão sofrer posteriores agravamentos por forma a que nunca mais saia da cadeia. “Você não merece voltar a sair a prisão”, destacou a juíza, entre algumas frases que marcaram a sentença como “Acabei de assinar a sua sentença de morte” ou “Nem os meus cães enviaria a si”. Até na hora de divulgar o veredicto, Rosemarie Aquilina quis marcar uma posição: “É para mim uma honra e um privilégio dizer que a sua sentença é…”.

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Esta quarta-feira, sétimo e último dia de audições de testemunhos, foi marcada sobretudo pelos dois depoimentos que encerraram a sessão e que motivaram sentimentos diferentes em Larry Nassar e respetiva defesa.

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A ginasta Kaylee Lorincz, até esta fase conhecida como “vítima E” por ser um dos dez casos em que o médico já se tinha declarado culpado, fez-se acompanhar pela sua treinadora e contou, na primeira pessoa, os vários abusos que sofreu desde os 13 anos. “Você roubou-me a inocência e eu só conseguia perguntar porque estava a fazer isso comigo. Ainda hoje e todos os dias tenho medo de voltar a ter um pesadelo. Mas houve um erro: subestimou a nossa força e a nossa vontade. Como se viu, fomos fortes e conseguimos derrubá-lo. Deixámos de ser desconhecidas”, declarou, antes de pedir que revelasse as entidades ou pessoas que foram “encobrindo a situação”.

Durante o depoimento, Larry Nassar chorou.

“Ainda continuam a cobrar consultas onde era molestada”, diz Emma Ann Miller, a última vítima de Nassar

Seguiu-se Rachael Denhollander, o último depoimento. E um depoimento com uma simbologia especial: depois de vários anos a ser desacreditada e ignorada, foi a primeira a apresentar queixa contra o antigo médico da seleção americana de ginástica no seguimento da investigação tornada pública pelo IndyStar em agosto de 2016 e acabou por dar o mote para que centenas de atletas tornassem também o seu caso público.

“Larry é o mais perigoso tipo de abusador”, disse a ex-atleta, que se cruzou com Nassar pela primeira vez em 2000, quando tinha apenas 15 anos. “Parece-me quase familiar o que todas as outras raparigas e mulheres disseram aqui, parecia que estávamos todas erradas e confusas. Ter-me molestado foi quase como uma arma apontada a mim. Gosto tanto de ginástica que ainda hoje continuo a assistir, mas a olhar sempre para a câmara que aponta para os treinadores para ver se estava lá o Larry”, acrescentou, depois de ter assistido aos seis primeiros dias de julgamento.

“O valor de uma rapariga ou de uma mulher no nosso país vai ficar a ser conhecido com a sentença anunciada. Não fazia ideia que, enquanto ia sendo abusada, todas as queixas iam sendo abafadas pela Universidade de Michigan State e pela Federação de Ginástica. Houve casos em 1997, 1998, 1999, 2000… e nada. Até quando tornei público o abuso que sofri, as pessoas disseram que queria fama e dinheiro…”, lamentou.

Durante o depoimento, a defesa de Larry Nassar chegou a levantar-se para contestar algumas das palavras, mas, mais uma vez, a juíza Rosemarie Aquilina voltou a destacar que Rachael Denhollander, tal como as 158 vítimas que lhe antecederam nos depoimentos, tinham o direito de dizer tudo o que pretendessem dizer. E, antes de fazer uma paragem de 15 minutos, elogiou a coragem da antiga ginasta que influenciou muitas outras vítimas.

“A Rachael não criou um caso, criou um exército de sobreviventes e é a general. Foi você que começou todo este terramoto e que fez com que as vozes se ouvissem. As outras sobreviventes e eu agradecemos. Foi a pessoa mais corajosa que já tive no meu tribunal”, salientou. E ouviu-se uma salva de palmas na sala.

15 minutos depois, tiveram início as alegações finais da acusação e da defesa. E Larry Nassar pediu a palavra para ler uma curta declaração, durante a qual olhou três vezes para todos os presentes na sala enquanto falava. “As vossas palavras nestes sete dias vão pesar para sempre na minha consciência. Não há nada que possa dizer que mostre o quão arrependido estou. É impossível pedir desculpa e vou carregar o que disseram até ao fim dos meus dias”, referiu. “Espero bem que sim, espero bem que sim”, atirou a juíza antes de iniciar as suas alegações.