Preferiu sempre os holofotes mediáticos do que a reserva dos gabinetes da Justiça. E foi muitas vezes criticado por isso. Em 2012, candidatou-se contra Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica, que então considerou o grande responsável pelo divórcio do clube da Luz com os “sócios, a democracia e a liberdade”. Quatro anos depois, sairia em sua defesa, descrevendo-o como “grande e incontestável líder do Benfica”. Na política, apadrinhou o nascimento do “Nós, Cidadãos”, que teve pouco mais de 21 mil votos nas legislativas de 2015. Criticou abertamente colegas de profissão, dizendo que eram a “classe menos confiável em Portugal”. Como desembargador da Relação acabou com o segredo de justiça interno na Operação Marquês, criticou o juiz Carlos Alexandre e o procurador Rosário Teixeira e acabou afastado do processo que tem José Sócrates como principal arguido por dúvidas sobre a imparcialidade depois de ter dado ao ex-primeiro-ministro a sua única vitória judicial. Esta terça-feira, foi alvo de buscas e constituído arguido por suspeitas de ter tentado influenciar decisões judiciais a troco pagamentos milionários.
O caso da então mulher, Fátima Galante, que agora volta a ser arguida
Juiz há mais de 30 anos, com uma vida pública preenchida, a Rui Rangel não lhe faltam polémicas. A primeira em que se viu envolvido nem o teve como principal protagonista. Logo em 1996, a juíza Fátima Galante (então mulher de Rangel) e o solicitador Hernâni Patuleia foram envolvidos num caso de corrupção, depois de terem sido implicados num esquema de alegado favorecimento a uma das partes em disputa num processo judicial. Galante acabaria por ver a acusação de corrupção passiva arquivada pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Patuleia, esse, foi condenado por corrupção ativa na forma tentada a três anos de prisão com pena suspensa.
Em outubro de 1998, num artigo de opinião publicado no Diário de Notícias, o jornalista Emídio Rangel (então diretor de informação da SIC e irmão de Rui) saudava o arquivamento do inquérito que envolvia a cunhada e acusava os advogados Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa (que representavam uma das partes no mesmo processo) de implicar Fátima Galante no alegado esquema de corrupção para obter ganhos de causa junto da Polícia Judiciária. Na resposta, os dois juristas, que revelaram aos investigadores as tentativas de extorsão de Patuleia em troca de uma decisão favorável de Galante, acusavam os tribunais de favorecerem a mulher de Rui Rangel por se tratar de uma magistrada judicial.
A juíza acabaria por interpor um processo contra os advogados por ofensa à sua reputação e ainda contra o semanário O Independente (entretanto extinto). A justiça portuguesa deu razão à queixosa, mas, em 2011, o Estado português seria condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a compensar os advogados em 41.500 euros por violação da liberdade de imprensa.
O nome de Fátima Galante, entretanto divorciada de Rui Rangel, salta agora novamente para a ribalta. Entre as 20 buscas domiciliárias realizadas esta segunda-feira no âmbito da Operação Lex, sabe o Observador, encontram-se as casas do juiz desembargador Rui Rangel, da sua ex-mulher, a juíza desembargadora Fátima Galante. A magistrada foi constituída arguida na Operação LEX.
[Os talões, o seguro e os emails a pedir dinheiro. Veja no vídeo alguns indícios contra Rui Rangel e as polémicas do juiz]
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Eliseu Bumba, os livros jurídicos e a “porta do cavalo”
Esta não é a primeira vez que Rui Rangel se vê envolvido em processos judiciais. Em novembro de 2015, os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) participaram ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), o órgão de gestão e disciplina dos juízes, um negócio que terá envolvido Rui Rangel e um dos principais arguidos no processo Vistos Gold. Como explicava aqui o Observador, Rangel terá negociado com Bumba, secretário do Consulado-Geral de Angola em Portugal e empresário, a produção de livros jurídicos, o que pode constituir uma violação do regime de exclusividade a que estão sujeitos os juízes.
Em novembro de 2013, Rui Rangel viajou entre Lisboa e Luanda juntamente com o filho. A despesa, na ordem dos 8.400 euros, acreditam os investigadores, terá sido suportada por Eliseu Bumba — algo que Rui Rangel sempre refutou. As suspeitas nasceram depois de António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos do Notariado e um dos principais arguidos no processo, ter admitido aos procuradores que Rangel tinha negociado com Eliseu Bumba a elaboração de Códigos Jurídicos. No processo, há mesmo uma escuta em que Figueiredo se queixa ao juiz Antero Luís de que Rangel estaria a “receber pela porta do cavalo“.
Caso Vistos Gold. Rangel e negócio milionário de leis angolanas na mira da acusação do MP
Como escreveu o Observador, com base no despacho de acusação a que teve então acesso, António Figueiredo “teve conhecimento que o juiz desembargador Rui Rangel teria negociado com Eliseu Bumba a elaboração de códigos jurídicos, percecionando-o como um seu concorrente uma vez que, pelo trabalho daquele, via defraudadas algumas expectativas que tinha em obter elevados ganhos monetários”.
A investigação do Ministério Público terá ainda apurado que um livro da Coimbra Editora intitulado “Código de Registo Civil Anotado e Legislação Complementar”, pago pela instituição Merap, liderada por Bumba, terá sido “afinal escrito pelo juiz desembargador Rui Rangel”. Rangel fez inclusivamente a apresentação pública do livro em Luanda, no dia 20 de junho de 2014. Na presença de Rui Mangueira, ministro da Justiça de Angola, e dos “formais co-autores da obra: Isabel Almeida e Eliseu Bumba”.
Segundo a acusação do Ministério Público, Bumba e Rui Rangel conheceram-se em 2013, quando o desembargador da Relação de Lisboa terá ministrado formação a juízes do Tribunal Constitucional de Angola através da Merap, empresa de Bumba.
As ligações ao universo benfiquista
As ligações ao Benfica também lhe valeram alguns dissabores. Em 2012, quando anunciou a candidatura ao cargo de presidente do Benfica, a decisão causou mal-estar entre os magistrados do Tribunal da Relação de Lisboa que há muito defendem que nenhum magistrado desempenhe cargos desportivos. Na época, o Conselho Superior da Magistratura chegou a sugerir ao juiz que suspendesse o exercício das suas funções, enquanto decorresse a campanha eleitoral do clube. Rangel não o fez.
O caso levantava ainda mais reservas porque, à época dos factos, Rangel tinha em mãos um processo que envolvia 29 elementos da claque dos No Name Boys, condenados em 2010 por tráfico de estupefacientes, posse de arma ilegal, ofensa qualificada à integridade física, entre outros crimes. O juiz desembargador acabou por pedir escusa já durante o período de campanha, pedido que acabaria negado depois de Rangel ter perdido as eleições.
A guerra contra Luís Filipe Vieira foi igualmente dura. Rangel, que terá contado com o apoio do ex-empresário de futebol e ex-dirigente benfiquista José Veiga, fez campanha exigindo uma auditoria às contas dos encarnados, alegando que havia “pessoas à volta do Benfica” que tinham ficado “mais ricas”, enquanto o clube ficava “mais pobre”. Sob a liderança de Vieira, dizia Rangel, o Benfica divorciara-se “dos sócios, da democracia e da liberdade”.
Numa resposta particularmente violenta, o presidente encarnado acusou Rangel de “não perceber nada da realidade do Benfica” e de “envergonhar a magistratura”. O juiz acabaria por perder por uma larga margem, recebendo apenas 13% dos votos. Quatro anos depois, já em 2016, Rangel não só teceu rasgados elogios a Luís Filipe Vieira, o “grande e incontestável líder do Benfica”, como apoiou publicamente a recandidatura do atual presidente do Benfica.
Os três — Rangel, Veiga e Vieira — surgem agora num triângulo cujas ligações estão ainda por esclarecer. A Operação Lex, que envolve Rui Rangel, nasceu de uma certidão retirada da operação Rota do Atlântico, iniciada no início de 2016 e que tem em José Veiga e Paulo Santana Lopes (irmão de Pedro Santana Lopes) os dois principais arguidos.
Segundo a investigação, os dois — Veiga e Paulo Santana Lopes — funcionariam como alegados intermediários num esquema de corrupção envolvendo membros do Governo da República do Congo. Os suspeitos terão atribuído vantagens a governantes congoleses em troca de contratos de obras públicas e de construção civil. O nome de Rangel terá surgido quando a polícia conseguiu identificar os alegados testas-de-ferro do esquema. O juiz desembargador é suspeito de ter recebido dinheiro de José Veiga, que teria chegado às mãos de Rangel através do filho do advogado José Bernardo Santos Martins, amigo do juiz. Durante buscas ao advogado Santos Martins, as autoridades terão encontrado talões de depósito, sempre abaixo dos 10 mil euros (montante que não é obrigatório declarar), e e-mails recorrentes de Rui Rangel a pedir dinheiro ao amigo.
Santos Martins e o filho foram também alvo das buscas desta terça-feira.
Oficial: PGR confirma que Luís Filipe Vieira é mesmo arguido
Esta terça-feira, Luís Filipe Vieira foi constituído arguido no âmbito da Operação Lex que envolve precisamente Rui Rangel. O presidente do Benfica tem como medida de coação o termo de identidade e residência, sendo suspeito de tráfico de influências, e deve ser interrogado nos próximos dias.
A decisão surge depois de os investigadores terem feito buscas no Estádio da Luz, com especial enfoque no escritório do dirigente Fernando Tavares, vice-presidente para as modalidades dos encarnados — amigo pessoal de Rui Rangel, membro da lista de Rangel patrocinada por Veiga e derrotada nas eleições de 2012. Outro dos críticos de Vieira nessa altura — chegou a dizer ao Expresso que Vieira se achava “dono” do clube — e que acabou por ser a grande surpresa nas listas de Vieira quando esta se recandidatou em 2016.
Fernando Tavares, vice-presidente do Benfica com a pasta das modalidades, também foi constituído arguido, de acordo com informação avançada pela TVI 24 e que foi confirmada pelo Observador. Tavares, que foi apoiante de Rui Rangel em 2012 quando o juiz se candidatou à liderança do Benfica contra Luís Filipe Vieira, será suspeito do mesmo crime do líder benfiquista: tráfico de influência.
As críticas à “classe menos confiável do país” e a dívida da operação estética
O excesso de protagonismo mediático de Rui Rangel valeu-lhe críticas entre magistrados. As ligações ao Benfica, o facto de ter apadrinhado a formação de um partido político (o Nós, Cidadãos) ou de ter fundado a Associação Juízes pela Cidadania (AJpC), que nunca se coibiu de propor publicamente reformas na Justiça, foram sempre olhados com reserva por muitos magistrados. Chegou a ter espaços de comentário e debate no Correio da Manhã e na RTP, experiências que lhe valeram o rótulo (depreciativo) de juiz comentador e algumas infrações disciplinares.
As pequenas polémicas que orbitaram em torno de Rangel ajudaram a alimentar “alguns anticorpos” que gerou entre a classe, como o próprio chegou a admitir em declarações ao jornal i. Em 2014, foi alvo de uma penhora por falta de pagamento a uma empresa de reparação de automóveis. Antes, já tinha sido condenado por falta de pagamento a uma clínica de estética Perfect Shape, num litígio que envolvia uma dívida por tratamentos de modelação corporal para redução do abdómen.
Habituado às críticas dos pares, Rui Rangel acabou por perder a paciência em 2015, depois de o Correio da Manhã ter avançado que o juiz desembargador se arriscava a ser alvo de um processo disciplinar do Conselho Superior da Magistratura por ter, alegadamente, plagiado outros magistrados e um professor universitário no acórdão em que de terminou o fim do segredo de justiça na Operação Marquês. Dessa vez, ouvido pelo jornal i, Rangel atirou-se à classe:
“Não faço parte do grupo de juízes cinzentões que acham que estão fechados numa redoma de vidro. Os juízes, infelizmente, não sabem ser membros de um poder soberano, agem com mentalidade de funcionários públicos. São a classe menos confiável em Portugal“, criticava então Rui Rangel. Agora, terá de se defender não apenas perante a classe.
As críticas a Carlos Alexandre, a decisão a favor de Sócrates e o impedimento final
A polémica mais recente em que apareceu envolvido o juiz desembargador da Relação de Lisboa surgiu no âmbito do inquérito judicial ao ex-primeiro-ministro José Sócrates. Como comentador na TVI24 num painel sobre a Operação Marquês, em junho de 2015, o juiz tinha falado da manutenção da medida de prisão preventiva sobre Sócrates, como esta tinha sido decidida pelo juiz Carlos Alexandre, para dizer que o pior que podia acontecer era a Justiça reagir “epidermicamente, de forma vingativa, só porque o arguido usou de um direito e de prerrogativa legal”.
A intervenção foi ouvida no meio judicial como uma crítica direta à decisão de Carlos Alexandre e Rangel foi mesmo alvo de uma pena disciplinar (de quinze dias), “por violação do dever de reserva”, aplicada pelo Conselho Superior de Magistratura, pelas declarações feitas na televisão. Foi também à luz destas declarações que acabou por ser visto, poucos meses depois, o acórdão de Rangel sobre o pedido da defesa de José Sócrates para ter acesso total às provas recolhidas e ao processo.
Em setembro de 2015, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu pelo levantamento do segredo de Justiça interno do processo Operação Marquês. Rui Rangel foi o juiz-desembargador que, a par com Francisco Carmelo, decidiu dar aos arguidos total acesso ao processo. O acórdão era especialmente crítico para o procurador Rosário Teixeira e o juiz Carlos Alexandre, recusando que os arguidos fossem “vítimas de truques”, ao não terem o acesso que pretendiam, e falava mesmo numa “autoestrada do segredo de justiça” que desprotege “ de forma grave os interesses e garantias da defesa do arguido”. O texto da decisão ainda fazia referência ao “tanto tempo” que já levava a investigação ao ex-primeiro-ministro. O Ministério Público tentou anular a decisão que considerava inconstitucional, mas o recurso foi apreciado pelo próprio Rui Rangel que manteve a sua posição, não admitindo o pedido.
Dois anos depois, novo caso, no mesmo processo. Em abril de 2017, José Sócrates requereu a nulidade do inquérito de que estava a ser alvo. A defesa do ex-primeiro-ministro queixava-se de prazos que “não podem estar sujeitos às estratégias, à discricionariedade e à arbitrariedade das polícias ou dos senhores procuradores” e de que existiam “sucessivas violações do segredo de justiça permitidas ou promovidas pelos responsáveis do inquérito” que estavam a viciar o inquérito. O requerimento apareceu pouco depois de a Procuradora-geral da República decidir prolongar o prazo para a conclusão do inquérito.
Aqui voltou a entrar Rui Rangel, já que o recurso interposto por José Sócrates seria apreciado, no Tribunal da Relação, pelo juiz desembargador. Mas o Ministério Público pediu escusa de Rangel, por “considerar existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do magistrado judicial”. O pedido foi aceite pelo Supremo Tribunal de Justiça que determinou que “fica o juiz desembargador Rui Manuel de Freitas Rangel impedido de intervir no processo NUIPC 122/13.8TELSB (Operação Marquês) do Tribunal Central de Instrução Criminal”.
Agora, aos 62 anos (nasceu em Angola a 12 de março de 1955), dos quais 35 de magistratura (estudou Direito em Lisboa, é magistrado desde 82 e há 13 anos juiz desembargador), volta a estar envolvido num processo que pode ser o mias complicado e polémico da carreira.
Artigo alterado às 00h05m