11 de fevereiro de 1956. Não nevou, é certo, mas Lisboa despertaria com um frio de enregelar. E tudo enregelaria, coberta a capital por um manto de geada: as ruas, as casas, tudo, tiritando com 1,4 graus negativos os lisboetas.
Antes, em 1896, a temperatura foi uma (mísera) décima mais fria. Havendo registos nos Serviços Meteorológicos Nacionais desde 1856, aquele era o segundo dia mais frio, se não de sempre, pelo menos em um século — em Lisboa, claro: nas Penhas da Saúde, em 1954, registou-se um “recorde” nacional de 16 graus negativos.
E o Diário de Lisboa, em reportagem a 11 de fevereiro, começava por descrever assim, com surpresa, a vaga de frio “penetrante”: “Penetrou em todos os lados, cobriu as ruas de geada, nos lagos dos jardins formaram-se películas de gelo, nos canteiros, um alvo manto de geada, verdadeiras suspensões de estalactites. (…) Penetra-nos nos ossos e em casa, resiste a braseiros, a caloríferos, ao aquecimento central, ao exercício ginasticante, à sopa quente, à camisola de lã e até ao cachecol”.
Apesar do frio, houve mesmo quem, resistente, arriscasse sair à rua naquele sábado de Inverno. A custo. “Vê-se, nas ruas, uma humanidade tiritante, nariz congestionado, cabeça entre os ombros, golas levantadas, que, irremediavelmente, bate os pés, gelando nas paragens dos elétricos ou caminhando numa cegueira apressada. Nos cafés, principalmente de manhã, o cafezito quente é consumido aos litros: café quente, cujo último golo já arrefece a boca”, escrevia o Diário de Lisboa na primeira página.
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Mas ao jornalista daquele vespertino o frio também pareceu belo. E relatava: “O sol de cor primaveril resplandecia, apesar de tudo, sobre a cidade, banhando de uma luz diáfana e subtil o casario, acariciando as ruas, as coisas e as gentes. Um azul límpido, boticelliano, cobria o burgo, transparente, até ao infinito. Mas o vento gélido contrastava com a outra faceta esplendorosa da Natureza.”
O Rossio era, como hoje é, lugar de visita, com frio ou dias solarengos. Não era visitado por turistas, é certo, mas por mirones, “espécie que resiste a todos os climas”.
Nos lagos do Rossio as ninfas, normalmente eufóricas, lançando os seus alegres jatos de água, apareceram curvadas ao peso de um anacrónico manto de gelo que lhes descia pelos desnudados ombros e espáduas e caía em minúsculas estalactites entre as altivas formas acastelando-se entre as bronzeas escamas. Uma ninfa coberta de gelo – que contraste! – e os mirones enregelados – porque o mirone é uma espécie que resiste a todos os climas e temperaturas – rodeavam os lagos, contemplando o inusual espetáculo. Até ao meio-dia foi um correr de gente que rodeava e lamentava as mitológicas criaturas”, podia ler-se no Diário de Lisboa.
“Enormes estalactites” nos fontanários
No dia a seguir, ainda piorou. “Apesar de algumas previsões ambiciosamente optimistas, Lisboa registou hoje, às seis da madrugada, a temperatura mais baixa de que há memória e registo — dois graus negativos! (…) A descida do termómetro na madrugada de 12 de Fevereiro de 1956 ficará, deste modo, na história dos nossos registos meteorológicos”.
O vespertino repetia as descrições de geada nos canteiros e fontanários com água solidificada, “formando enormes estalactites”. Porém, o frio não impediu que os “folgazões” gozassem o Carnaval, enchendo “dancings”, bares e casas particulares. “O pior foi a retirada, com os dois degraus abaixo de zero a arrefecer os efeitos vaporosos das bebidas e da alegria.”
Quem tiver ficado doente, encontrou um possível remédio nas páginas do jornal do dia seguinte — um anúncio disfarçado de breve, com o título “Frio”, apelava: “O ar frio e humidade inspiradas, no tempo invernoso, provocam resfriamentos. (…) Logo que sinta dores de garganta ou anginas, mesmo de aparência benigna, use Penicilflavina ao menor sintoma. Vende-se em todo o país”.
A temperatura na capital deixou logo de ser notícia. Aliás, os 2 graus negativos em Lisboa referidos na imprensa não foram oficialmente reconhecidos pelo Instituto de Meteorologia, que fixou a temperatura mínima em 1,2 graus negativos.
Ainda morreu uma idosa, moradora na Rua de São Bento, identificada no jornal pelo nome e… pela raça. “A sr.ª Páscoa Helena das Dores, de 74 anos, de cor.” No resto do país, houve notícia de pelo menos mais quatro mortes com esta vaga de frio de 1956: uma idosa em Meixedo, encontrada morta pelos vizinhos depois de ter ido apanhar lenha na tarde anterior; outra idosa, em Vila Nova de Poiares, que morreu depois de ter caído sobre a lareira; e mais dois homens, um em Sernancelhe e outro em Évora, também vítimas do frio extremo.
Na Europa, “do Atlântico aos Balcãs”, como escrevia o Diário de Lisboa a 16 de fevereiro, morreram quase seiscentas desde o começo de 1956. O caso mais grave ocorreu a 14 de fevereiro. “Foram encontrados cinquenta e oito corpos de camponeses, guardas de fronteiras e empregados da geradora elétrica vítimas da avalanche que caiu sobre o vale do rio Badika, na Jugoslávia”, escrevia-se então.
No começo desta semana, com vários distritos em alerta amarelo, a Autoridade Nacional de Proteção Civil aconselhou os portugueses a tomarem medidas preventivas face ao tempo frio — sessenta e dois anos volvidos sobre aquele sábado gélido que nem o “exercício ginasticante” afastava.