“Mesmo quem tem uma visão ampla não vê o que está nas suas costas.” Eurico Reis, jurista e ex-presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, usa a metáfora para explicar o problema que os juízes do Tribunal Constitucional terão em mãos quando tiverem de olhar para a lei da gestação de substituição. E terão de fazê-lo porque há mais de ano, em fevereiro de 2017, um grupo de deputados do CDS e do PSD requereram a fiscalização da constitucionalidade desta lei.
Mais de um ano depois, os juízes do Palácio Ratton continuam sem ter deliberado sobre o assunto, mas uma notícia do Expresso veio dar conta de que estariam prestes a fazê-lo. E seria no sentido de considerarem a gestação de substituição inconstitucional.
“Felizmente ainda não há uma deliberação”, diz Eurico Reis, juiz do Tribunal da Relação de Lisboa, que aproveita para lançar uma ideia: “Deveria estar previsto que grupos de interesse legítimo possam apresentar comentários ao pedido de fiscalização dos deputados.”
Para o jurista, esta regra seria essencial para garantir o direito ao contraditório, fundamental nos países civilizados. “Os interessados, a favor ou contra, deveriam poder apresentar um comentário.” E esse comentário não poderia ter a forma de uma opinião, mas sim de argumento jurídico.
E isto serviria para quê? “A decisão do TC seria mais rica se ouvisse mais opiniões. The more the merrier. Quanto mais opiniões eu ouvir, mais ampla vai ser a minha visão, se ouvir vários pontos de vista vou produzir uma deliberação mais enriquecida. O contraditório é bom.”
Esta ideia do contraditório diz, já existe nas restantes fiscalizações — preventiva e sucessiva — que podem ser pedidas ao Tribunal Constitucional. “Aqui não há essa hipótese, foi feito um pedido pelos deputados e os destinatários da norma não se pronunciaram. A Associação Portuguesa de Fertilidade até foi muito ativa e enviou uma carta aos juízes. Mas teve o bom-senso de não pedir para serem juntas ao processo. Se o fizesse, tinha acabado a pagar custas e mais nada.”
Sobre a hipótese de a lei vir a ser declarada inconstitucional, Eurico Reis não quer acreditar que seja possível. “O senhor Presidente da República é um perito em direito constitucional e não deixou de sê-lo por ter passado a ser Presidente. Eu sou jurista, tenho legitimidade para fazer esta afirmação. Não creio que se ele achasse que o diploma era inconstitucional o tivesse promulgado. Vetou-o uma primeira vez e quando voltou a recebê-lo poderia tê-lo enviado para o TC e não o fez. Em termos técnico-jurídicos isto é relevante, é a opinião de um perito.”
Questionado sobre se haverá margem para os juízes se inclinarem para a inconstitucionalidade, o jurista já não tem tantas certezas. “Em todos os tribunais — todos, não só no Constitucional — há alguma margem para discricionariedade. Não estou a falar do puro arbítrio. Mas tem de ser assim, é assim que a sociedade funciona. Não devemos andar sempre a mexer nas leis, mas elas têm de acompanhar a evolução dos costumes.”
O juiz desembargador acredita que essa dose de arbítrio tem de ser conferida a alguns decisores, mas deixa o alerta. “Esta é a melhor forma de agir, mas atenção. Tem de se ter muito cuidado com quem se escolhe — isto é válido para todos os juízes, todos. Tem de se ter muito cuidado na escolha. Às vezes falhamos porque as pessoas não conseguem perceber a importância do poder judicial. E ele tem, nós os juízes, a obrigação de garantir a livre concorrência de ideias, de mercado, a igualdade de oportunidades.”
No início da semana, o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) anunciou ter dado luz verde a dois novos pedidos de gestação de substituição, havendo até à data sete processos pendentes.
Em quatro deles, o CNPMA pediu documentação adicional, dois aguardam o parecer da Ordem dos Médicos e o último encontra-se à espera do agendamento de entrevistas. Eurico Reis — que foi presidente desta entidade reguladora durante dois mandatos, desde a sua criação em 2006, tendo sido sucedido no cargo por Carla Rodrigues no final de fevereiro — foi nomeado relator destes processos.
Assim, a recente notícia sobre uma eventual inconstitucionalidade não está a pôr em causa o funcionamento da CNPMA. “Estamos em velocidade cruzeiro. Houve um trabalho muito intenso, temos muitas deliberações, foram criadas balizas, há regras muito definidas. Se agora houver uma deliberação do TC de inconstitucionalidade vai ser um elemento perturbador. Vai violar expectativas destas pessoas. Do ponto de vista jurídico, a tranquilidade, a segurança jurídica são valores muito importantes.”
Embora acredite que a lei pode precisar de “alguns retoques” não defende que seja preciso mexer na legislação. “É preciso é que a entidade reguladora — a CNPMA — progrida, que continua a fazer deliberações, que entre no seu normal funcionamento. E a sociedade tem de dar margem à entidade reguladora para fazer o seu trabalho.”
Ontem, a ONU apelou para que a gestação de substituição seja regulada com urgência em alguns países, já que considera que o pagamento à mulher que carrega a criança no ventre equivale à venda de crianças.
Em Portugal, a lei proíbe qualquer tipo de pagamento nestas situações da mesma forma que impede que a gestante doe material genético para a concepção da criança. Se o contrato for feito a troco de dinheiro, os beneficiários e a gestante incorrem pena de prisão.
Daí o termo barriga de aluguer ser errado para definir a situação portuguesa. “Quando muito seria gestação de substituição remunerada, que não é o nosso caso. Barriga de aluguer é injurioso e as mulheres que o fazem não merecem ser insultadas”, argumenta Eurico Reis.
Embora Portugal esteja fora do foco das Nações Unidas, há países onde estes contratos têm um lado comercial forte como afirmou Maud de Boer-Burquicchio, relatora especial das Nações Unidas sobre venda e exploração sexual de crianças.
“A gestação de substituição é uma indústria crescente motivada pela procura internacional e é uma área de preocupação em relação aos direitos humanos das crianças e sua proteção”, afirmou. “A gestação de substituição comercial, como se pratica atualmente em alguns países, equivale à venda de crianças”.
As crianças nascidas de gestação de substituição através de acordos comerciais internacionais, defendeu, têm um risco especial e os Estados são obrigados a protegê-los. E pediu especial atenção para os casos em que são beneficiários (pais) são de países desenvolvidos e as gestantes de países em desenvolvimento, já que nestes últimos a legislação é mais frágil.