Era o primeiro debate pós-reeleição de Assunção Cristas, e sobre isso António Costa não resistiu: “Queria começar por congratular a senhora deputada Assunção Cristas pela reeleição num congresso com tanta atenção mediática“. Mas ficou-se por aí, entrando depois num ping-pong com a líder do CDS. Era também a segunda oportunidade de o líder parlamentar do PSD, Fernando Negrão, mostrar que sabe fazer oposição: e desta vez, ao contrário do que fez há 15 dias, levou vários temas na manga. Das “contas marteladas” do Montepio, ao caso das fugas de informação da justiça para o Benfica. Mas sobre isso, Costa regozijou-se: “Ao menos por uma vez a violação do segredo de justiça foi fácil de descobrir”. Afinal, o Benfica até é um clube que os “une”.

Negrão sugere que contas do Montepio são “marteladas”. Costa diz que Governador é que tem de explicar

O tema central, contudo, foi a campanha de prevenção contra os incêndios, que o Governo tinha escolhido para tema deste quinzenal. O primeiro-ministro pediu uma mobilização nacional pela limpeza das matas, e deu o exemplo de Marcelo Rebelo de Sousa que já alinhou em participar, ao lado dos membros do Governo e do presidente da Assembleia da República, “na grande ação de limpeza da floresta que vai decorrer nos dias 24 e 25 de março”. Em matéria de incêndios, até os jornalistas foram alvo de um reparo do primeiro-ministro, que criticou a “péssima qualidade” da “informação que só desperta para o problema no meio da tragédia”.

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Houve também ainda tempo para uma pequena crise de ciúmes na “geringonça”, quando Jerónimo de Sousa notou haver “uma nova fase” da política nacional, referindo-se ao apoio do PS no PSD e CDS para travar os projetos da esquerda em matéria laboral.  Mas os ciúmes maiores até eram outros e parece não se ficarem pela bancada do PCP, como acabou por admitir Costa. É ler os principais pontos deste debate quinzenal:

Uma cena de ciúmes e uma promessa: propostas laborais a caminho

BE desafia, Costa avança com data. É a grande bandeira da esquerda na reta final da legislatura e nem BE nem PCP vão largar. Um dia depois de o PS ter chumbado, no Parlamento, propostas do PCP sobre contratação coletiva, que a bloquista considerou “um erro”, Catarina Martins deixou o desafio: “Não queremos crer que o Governo não vai cumprir o seu programa. Revogar o banco de horas está no programa do Governo. Quando? Por que não ontem? Quanto tempo estaremos à espera?”. E foi aí que o primeiro-ministro respondeu: dia 23 de março. É essa a data em que o Governo vai levar à concertação social as propostas do Governo sobre a legislação laboral. E como a revogação do banco de horas individual até era uma promessa que estava no programa eleitoral do PS (antes mesmo de BE e PCP entrarem na equação), pelo menos essa questão ficará certamente resolvida. “Vamos cumprir”, disse Costa, destacando também a promoção da contratação coletiva e o combate à precariedade como bandeiras a defender.

Uma nova fase da política nacional… Jerónimo de Sousa foi o único a notar o romance entre PS e PSD (mas não se pode pode dizer que  a crise de ciúmes tenha sido exatamente sobre isso). Disse que, como se viu esta quarta-feira no Parlamento, o PS está a juntar-se à direita para chumbar propostas da esquerda sobre a legislação laboral, e também não esqueceu a legislação sobre as plataformas de transportes como a Uber, que só foi aprovada ontem na especialidade depois de uma negociação detalhada entre socialistas e sociais-democratas. Jerónimo não perdoa, e notou que “entrámos numa nova fase da política nacional”. Costa não fez caso, e disse apenas que só não aprovou os projetos do PCP sobre contratação coletiva e o banco de horas individual porque discordava do “timming”. Traduzindo: quer antes apresentar à concertação social, e anunciou que vai fazê-lo no próximo dia 23.

…E uma cena de ciúmes. A cena de ciúmes foi outra. Foi mesmo entre os parceiros da “geringonça”. Catarina Martins tinha perguntado a Costa sobre as alterações ao cálculo das pensões nas longas carreiras contributivas, e Costa tinha-lhe respondido que, não podendo levar novidades sobre essa matéria a cada 15 dias, que descansasse porque quando houvesse novidades seria “a primeira a saber”. Pois Jerónimo de Sousa não gostou, e brincou com o assunto. “Garantiu aqui à deputada Catarina Martins que será a primeira a saber. Por mim, não me importo de ser o último, mas que os primeiros sejam esses trabalhadores, que estão à espera de uma resposta concreta porque foi o Governo quem lhes criou as expectativas”, disse. Aí sim, Costa acusou o toque — e extrapolou a crise de ciúmes também para Carlos César, líder parlamentar do PS. “Eu ainda corrigi – que [Catarina Martins] seria ‘das primeiras’ [a saber]. Já estava a olhar para o olhar fulminante do deputado Carlos César que, às vezes, não gosta que se ache que falamos mais com o PCP, PEV e BE do que com o PS… Mas o deputado Jerónimo de Sousa será também, seguramente, dos primeiros a saber da nossa posição”. Amigos como dantes.

A limpeza das matas a que ninguém liga (à atenção dos jornalistas)

Mobilização nacional pela floresta. Foi o pedido que o primeiro-ministro levava na manga para o debate quinzenal: Costa convidou todos os deputados a juntaram-se ao Presidente da República, ao presidente da Assembleia da República e aos membros do Governo nas ações de limpeza das matas dos próximos dias 24 e 25. Essa sim é que será a “grande campanha”, disse, sublinhando que não é por acabar hoje o prazo dado aos proprietários para a limpeza dos terrenos que termina hoje o “dever de limpeza da floresta”. “Deixo aqui o desafio a todas as bancadas a juntarem-se a nós para fazer de março o grande mês da limpeza da floresta”, disse no seu discurso inicial, inteiramente dedicado à prevenção dos incêndios.

Caça à multa? António Costa diz que não. Foi uma das críticas mais apontadas pelos deputados mas Costa quis arrumar o assunto logo na sua intervenção inicial: “Hoje mesmo será aprovado um decreto-lei que esclarecerá que não serão aplicadas coimas se até junho as limpezas não estiverem concluídas”. E depois ainda reforçaria: “O objetivo da campanha não é a caça à multa, é a limpeza do mato”. Fernando Negrão foi um dos que criticou a medida, dizendo que “as orientações para a limpeza foram contraditórias e confusas”. “As vítimas dos incêndios sentiram-se ameaçadas com os prazos das coisas. Não é admissível”, disse.

Um pingue-pongue com Cristas sobre fogos. Quando chegou a vez de Assunção Cristas falar, a líder do CDS e o primeiro-ministro envolveram-se num autêntico jogo de pingue-pongue, com perguntas e respostas rapidíssimas. O tema foi quase sempre os incêndios do verão e o que está a ser feito para evitar novas tragédias. Cristas recordou o que Xavier Viegas disse esta quarta-feira aos deputados sobre as falhas que houve em Pedrógão ao nível do sistema de busca e salvamento, e Costa respondeu que, no modelo que está a ser desenhado para os próximos anos, haverá “forças especializadas em proteger e socorrer as pessoas e os seus bens”. Seguiram-se muitas outras perguntas, ora sobre os meios aéreos previstos para este ano, que Negrão já tinha criticado a demora dos concursos internacionais, ora sobre as indemnizações às vítimas dos incêndios. Segundo Cristas, há pessoas que estão a ser “persuadidas” a declarar prejuízos inferiores a 5 mil euros, apesar de terem tido prejuízos bastante superiores, para verem a sua indemnização chegar mais depressa — e mesmo assim não recebem o montante na íntegra. Perguntas rápidas para respostas rapidíssimas: Costa disse até que já tinha mandatado o professor Xavier Viegas para fazer um relatório independente semelhante ao de Pedrógão para os fogos de outubro, apesar de Xavier Viegas ter dito ontem que, embora já andasse no terreno, faltavam questões burocráticas para oficializar o mandato.

“Péssima qualidade da informação”. Ouvimos bem? Sim, na última intervenção do debate, em resposta à extensa intervenção do PS, o primeiro-ministro atirou uma crítica contra a comunicação social. “Um dos maiores problemas do país é a péssima qualidade da nossa informação, que só acorda para os problemas a meio das tragédias, esquecendo-se habitualmente do problema na hora certa de prevenir que a tragédia possa vir a ocorrer”. Recado dado. Aos jornalistas ou aos políticos? Era aos jornalistas.

Das contas “marteladas” no Montepio ao Governo que diz não ter nada a ver com isso

O milagre. Na estreia num debate quinzenal como líder parlamentar, Fernando Negrão cingiu-se ao tema da entrada da Santa Casa do capital do Montepio, e no segundo combate com o primeiro-ministro voltou ao Assunto. Fernando Negrão referiu a recente operação de crédito fiscal à Associação Mutualista Montepio, que permitiu uma melhoria das contas em 800 milhões de euros. Descreveu-a como “o milagre da multiplicação dos pães”. Não foi o único a fazer referência a esta operação, apesar de ter sido o que mais picardia provocou com António Costa. Mas já lá vamos. Primeiro as críticas à operação, que Negrão referiu como “contas marteladas” que são “buracos financeiros futuros” e que Catarina Martins, do BE, disse ser uma “manobra para disfarçar a contabilidade”, que “é grave”.

Atirar para o Banco de Portugal. Na resposta às acusações, o primeiro-ministro respondeu ao lado. Garantiu que “o Governo não tomou decisão nem teve atuação direta” nessa operação, explicando que “a Associação Mutualista mudou o estatuto e pôs a questão à Autoridade Tributária por causa da mudança de perfil, e então passou a ser obrigada a pagar IRC mas passou a poder beneficiar do conjunto de mecanismos de dedução que estão previstos para qualquer outro contribuinte em sede de IRC. O que se verifica com a Associação Mutualista é o que se verificará com qualquer outro contribuinte em sede de IRC”. Uma explicação que o ministro das Finanças já tinha adiantado no dia anterior. Sobre as contas, Costa remeteu qualquer explicação para o governador do Banco de Portugal: “Estou certo que o governador do Banco de Portugal terá o maior gosto em esclarecer se as contas são ou não marteladas”. Costa fugia à pergunta invocando o Banco de Portugal, que nada tem a ver com a associação mutualista. Mas Negrão responderia (ver ponto seguinte).

“Interesse particular”. Costa ainda provocou Negrão, sugerindo a existência de um “interesse” na situação do Montepio: “Um dia havemos de descobrir o seu profundo interesse em relação à situação do Montepio”. E a provocação não passou despercebida a Negrão, que atirou em resposta: “Interesses particulares deve ter o Governo. Quais são os interesses do PS? É que o meu único interesse é o interesse público, é o interesse dos 650 mil membros da Associação Mutualista, estou a falar da associação que é tutelada pelo seu ministro, Vieira da Silva”. E não pelo Banco de Portugal. “Ainda bem que esclareceu”, havia ainda de dizer Costa logo a seguir sem nunca deixar claro ao que se referia inicialmente.

O Benfica que os une e a “boca” à violação do segredo de justiça

Até do Benfica falou. A melhor prova que, desta vez, Fernando Negrão quis pôr a carne toda no assador, foi que até sobre o Benfica falou. Em termos judiciais, claro, porque em termos futebolísticos apenas anotou que é um clube que o “une” ao primeiro-ministro. O que preocupa o líder parlamentar do PSD é a segurança na Justiça, numa altura em que dirigentes do Benfica estão a ser investigados no âmbito de um caso de fuga de informação judicial, o “e-toupeira”. “Já foi tomada alguma medida no sentido de criar condições para que o nosso sistema informático possa não estar sujeito a acontecimentos e circunstâncias desta natureza?”, questionou o social-democrata numa das perguntas que fez a Costa.

Ironia no segredo de Justiça. O primeiro-ministro respondeu com afinidade clubística: “Mesmo tratando-se de um clube que nos é querido, trata-se de matéria que está em investigação”, recusando alongar-se sobre o caso. Mesmo assim, Costa diz que “a fazer fé no que vem na comunicação social, não há forma de prevenir que alguém certificado para usar o sistema o use de forma indevida. Devemo-nos regozijar que, por uma vez, a violação do segredo de justiça foi fácil de descobrir”, disse Costa na resposta a Negrão, aproveitando para uma pontada ao sistema judicial.