Não é que Alexandra Moura e Susana Bettencourt tenham combinado, mas as duas designers apresentaram as respetivas coleções de outono-inverno 2018/2019 no sábado, no muito recente Terminal de Cruzeiros, sob um mesmo chapéu: o da nostalgia. Na 42ª edição do Portugal Fashion, que tem um primeiro dia dedicado a Lisboa, vimos desfilar memórias de infância e da adolescência, em duas coleções revivalistas que nos trouxeram o melhor de décadas passadas, refletidas em padrões diversos e em cortes assimétricos.
Minutos após o desfile de Alexandra Moura, que apresentou a coleção “I Am” com o rio Tejo ali tão perto, a designer explicava ao Observador, já nos bastidores e depois de muitas congratulações, como voltou atrás no tempo, aos anos 70, 80 e 90, para criar peças que, no fundo, refletem as muitas influências que ajudaram a construir a mulher e a criadora. “Isto é tudo aquilo que absorvi num Portugal com pouca informação”, conta, referindo-se ao rock underground britânico e ao hip hop norte-americano que vinha de fora, mas também aos muitos filmes de ficção científica — de “Blade Runner” a “E.T. – O Extra-Terrestre” — que tanto adorava. “A ficção científica teve um papel muito importante na minha vida e na descoberta de novos universos na minha cabeça”, sintetiza, para depois explicar como conseguiu, afinal, fazer uma fiel interpretação de memórias. “É uma coisa intuitiva. À medida que vou trabalhando, vou-me lembrando de situações.”
As muitas influências traduzem-se, então, numa tendência psicadélica clara, que se ocupa sobretudo dos muitos padrões que dominam a coleção. O tule, a lycra e o cetim estampados, o jacquard, o algodão e a lã foram os materiais utilizados para estabelecer uma ponte entre o clássico e o contemporâneo, sem descurar o padrão quadriculado tartan que abriu a coleção, onde não faltaram tench-coats, vestidos oversized e lenços ajustados ao pescoço ou na cabeça.
Tudo foi pensado ao pormenor: para o styling e criação de coordenados, Alexandra Moura inspirou-se no trabalho de um fotógrafo em particular, Bobby Neel Adams, que tem por hábito juntar fotografias de uma mesma pessoa tiradas em fases diferentes da vida. Não foi ao acaso que na passerelle desfilaram modelos com cabelos frizados de um lado e lisos do outro, com calças desviadas e até camisas com padrões desiguais. A ideia foi precisamente colar presente e passado num mesmo look, onde as assimetrias e a relação entre peças de diferentes volumetrias foram rainhas. As peças inacabadas voltaram a estar em destaque, com Alexandra Moura a ser uma adepta dos tecidos em bruto.
Susana Bettencourt também nos levou à sua infância, em particular, aos momentos de diversão, numa altura em que as crianças saiam de casa para brincar — fosse na rua ou nos salões de jogos. É precisamente aos “Arcade Games”, que facilmente nos transportam para o filme “Tron”, de 1982, que a designer vai buscar inspiração para os padrões que são a alma da coleção chamada “Machine After Machine”. “A coleção é uma crítica, mas também um enaltecer da era digital”, explica ao Observador, findo o desfile que trouxe malhas grossas tricotadas fundidas com bombazine brilhante, volumes criados com fitas de malhas e franzidos, e ainda o brilho do chenil conjugado com jacquards. As malhas, como de costume, são as grandes protagonistas, já que são a forma artística de a designer se expressar.
“Esta coleção reflete um período de viragem, do final dos anos 80 e início dos anos 90. É a minha infância, a altura em que se ficava com a roupa dos irmãos, daí as calças largas e as peças desconstruídas”, continua Bettencourt, que explica que os padrões são invadidos pelos símbolos de jogos de pinball e que o lettering vai buscar inspiração aos jogos da Sega. “Criámos ainda duas personagens de jogo, o pássaro robot e o cão robot. Na verdade, criámos o nosso próprio jogo para esta coleção.”
Susana Bettencourt admite que foi influenciada por séries como “Strangers Things”, que a fez pensar na forma como se brincava num antigamente que, de repente, parece muito distante. Ainda assim, reconhecendo que não dá para voltar atrás, admite que o ideal “é tirar o melhor de tudo” e “não esquecer de onde viemos”. A coleção em causa, como não poderia deixar de ser, também se destina a crianças.
No primeiro dia de Portugal Fashion desfilaram ainda nomes como os StoryTailors, que mostraram peças divisíveis através de fechos e conjugáveis entre si, mas também Pedro Pedro e Carlos Gil — se o primeiro voltou a imaginar “a repartição das finanças mais cool do mundo”, dando voz a uma mulher forte através da reinterpretação de peças clássicas conjugadas com uma paleta de tons aconchegantes, tal como fez em Milão, o segundo voltou a ser fiel a si próprio, trouxe um show de cor e brilho, com punhos e golas de pelo, macacões com detalhes de bombers e saias, calças e blusões de lantejoulas.
O dia não acabou sem antes vermos desfilar as peças de Alves/Gonçalves, com looks urbanos que são uma transgressão dos códigos clássicos a invadirem a passerelle. Exploração de formas e manipulação de tecidos, néons vários, conjugações invulgares, estampagens e plissados foram os protagonistas do desfile, sem descurar as muitas peças cuja construção envolveu o uso de práticas artesanais.
Para o fim ficou o desfile de TM Collection, de Teresa Martins, que trouxe silhuetas livres e uma paleta de cores variada — dos verdes, azuis e castanhos profundos às pinceladas de magenta, mostarda e verde-gelatina.
A 42ª edição do Portugal Fashion arrancou no Terminal de Cruzeiros, em Lisboa, e segue agora para o Porto, onde de 22 a 24 março, no Parque da Cidade, vão desfilar muitos outros nomes da moda portuguesa.