Lembra-se de “Os Serranos”? Estávamos em 2005 e a TVI ainda jogava com a ficção nacional fora “Casa dos Segredos”, “Love On Top” e telenovelas. Ora bem, não importa se se lembra ou não. Mas fique a saber que o original foi uma criação de Álex Pina, o argumentista e produtor que está a dar que falar: foi da cabeça dele que saiu “A Casa de Papel”. É um dos fenómenos televisivos do último ano. E os episódios finais chegam dentro de duas semanas à Netflix.
Álex Pina tem carreira firmada na televisão. Além de “Los Serrano” (título original), cabem ainda no seu currículo “Periodistas”, “El Barco” e “Vis a Vis”. Graças a “A Casa de Papel” conseguiu uma enorme projecção internacional. Só teve uma das melhores ideias para um assalto na ficção de sempre: entrar na Casa da Moeda espanhola e imprimir dinheiro, ao invés de o roubar. É um golpe de génio que saiu da cabeça de um estratega que se autodenomina Professor (Álvaro Morte). Estivemos à conversa com o homem que criou El Professor. E Tokio, Berlín, Río, Nairobi, Denver, Helsinki, Moscú e Oslo. O gangue favorito de todos em 2018.
[o trailer de “A Casa de Papel”:]
Tem uma carreira sedimentada na televisão, tanto como produtor e argumentistas de séries. Como é que surgiu a ideia para “A Casa de Papel”?
Sou um grande entusiasta de ficção sobre assaltos, sejam filmes ou séries. E houve um momento na minha vida em que pensei: porque é que não faço algo do género para televisão? Porque esses tipos de enredos são mais comuns no cinema do que na TV. E numa série poderia trabalhar mais a fundo as personagens, porque nos filmes, como há menos tempo, o desenvolvimento costuma ser menor. Foi o desejo de trabalhar mais a fundo personagens nesse cenário que esteve na génese de “A Casa de Papel”. Foi complicado fazê-lo, mas creio que conseguimos.
E foi influenciado por alguma ficção?
Tanto numa série que trabalhei anteriormente, “Vis a Vis”, como em “A Casa de Papel”, preocupei-me muito com a ambiguidade moral das personagens: onde está o bem e onde está o mal. Por isso, “Breaking Bad” foi uma grande influência. É uma série que trabalha muito bem essa temática do bem e do mal nas personagens e como isso se vai disseminando e transformando as próprias personagens. Pode começar num sítio e terminar com uma existência, ou moralidade, totalmente diferente. “Breaking Bad” é um grande exemplo de uma série que faz isso muito bem. Mas existem outras, claro.
Fez algum tipo de investigação sobre como elaborar o assalto e como a polícia reagiria?
Trabalhámos com muita proximidade com um inspector da polícia que serviu como consultor da série. Ele ajudou-nos da melhor forma a tentar tornar a parte policial credível. Já o Professor e o seu plano, como têm características mais exuberantes, foram mais difíceis de investigar e escrever. Mas com a polícia foi fácil, tentámos que pensassem como polícias e que agissem como eles. É dos detalhes mais realistas de “A Casa de Papel”.
Em “A Casa de Papel” entra-se logo na acção. Por que é que quis que começasse com tanta força e energia?
Sentimos que tudo teria de acontecer dentro da Casa da Moeda. Escrevemos muitos inícios, mas quisemos sempre que entrassem lá o mais cedo possível. Era um desejo nosso que isso acontecesse em poucos minutos: não queríamos que o plano fosse contado de fora, as personagens teriam de estar lá dentro, com os reféns, com tudo a andar e a partir daí seriam revelados os detalhes.
Qual a razão pela divisão da primeira temporada em dois momentos?
Em Espanha a série passou na Antena 3 e sabíamos que pelo meio iria meter-se o verão e a série teria de parar. Nas séries em Espanha, os episódios têm setenta minutos, por isso resolvemos fazer uma primeira parte com nove episódios, que terminaria com um grande cliffhanger, e depois mostraríamos os restantes seis passados dois meses. Na versão internacional ficou dividida em treze episódios mais nove. Mas a razão principal deve-se a essa paragem no verão.
Participou na reformulação dos episódios para a Netflix?
Sim, claro. Tivemos que montar a série toda de novo. O problema principal foi transformar episódios de setenta minutos para 45 minutos. Foi um trabalho muito intenso.
A ideia de um assalto que envolve impressão de dinheiro é original. Como surgiu?
Quando começámos a pensar num assalto percebemos que quase tudo já tinha sido feito e queríamos ser originais. Já tínhamos visto assaltos de tudo, diamantes, dinheiro, etc. Mas nunca tínhamos visto algo do género: imprimir o próprio dinheiro. Parecia algo muito interessante, um grupo de pessoas que não estão a roubar dinheiro que pertence a alguém, estão a imprimir o próprio dinheiro. E achámos que isso iria criar uma maior identificação dos ladrões com a audiência. A ambiguidade moral iria estar num lugar onde, por hábito, não costuma estar. Teria de ser um assalto diferente, algo que ainda não tivesse sido feito.
Pareceu-vos arrojado, na altura?
Sim, porque era um crime perfeito. E era um desafio criar ficção em contínuo neste cenário, dividida por episódios, ao longo das 136 horas que o assalto duraria. Foi muito complicado planear tudo para esse tempo todo.
Vê as personagens dos assaltantes como heróis ou anti-heróis?
Penso que são as duas coisas. São heróis porque o espectador se identifica com eles e acabam por ser anti-heróis porque são ladrões, de certa forma, perdedores. Quando o espectador está a ver a série, percebe os ladrões, apesar de estarem à margem da lei, está com eles. Do outro lado temos a polícia e o governo e, neste caso, não se quer estar do lado deles. Quisemos explorar essa dicotomia.
O molde das personagens e do próprio assalto e a sua relação com a audiência foi um modo de explorar o clima político, económico e social actual de Espanha?
Tem mais a ver com o clima actual global. Estamos num momento de cepticismo com o capitalismo, com os bancos centrais, o governo e até com qualquer ideia de revolução. Atacar a criação do dinheiro converteria os ladrões em heróis nacionais. Creio que esse ambiente geral, no mundo interior, ajuda na percepção da transformação dos ladrões em heróis.
Qual foi a personagem que lhe deu mais prazer em construir?
O trabalho com todos os actores foi impressionante. Interpretaram muito bem o texto. Gostei muito de construir o Berlín [Pedro Alonso], porque é muito excêntrico e isso deu maior liberdade na escrita, por causa da sua ironia, humor negro e por ter um pensamento completamente diferente das restantes personagens. E, claro, o Professor e a Inspectora [Itziar Ituño], como binómio, são personagens muito carismáticas e que crescem com a relação que têm. Agrada-me construir personagens ricos, completos e com muitas camadas. Penso que hoje em dia as personagens estão mais ricas em toda a ficção. E no caso de “A Casa de Papel” elas estão inseridas num plano estratégico, perfeito, com uma protagonista, Tokio [Úrsula Corberó], muito emocional, que cria uma grande empatia com o espectador.
O que tornou a série num êxito global?
Penso que tem a ver com o momento em que vivemos. Estamos cépticos face aos nossos governantes, aos bancos centrais, aos outros governos. A série junta várias coisas e tem um género perfeito para explorar todas essas dimensões. E tem um lado muito sentimental, emocional, com personagens que as pessoas gostam e que agradam tanto ao público feminino como masculino.
Vai fazer uma segunda temporada?
Honestamente ainda não sabemos o que fazer. Porque “A Casa de Papel” era uma série que se encerraria após uma temporada, por isso não sei mesmo o que iremos fazer.