As nuvens quiseram ouvir de perto os 10000 Russos e formaram uma camada espessa por cima da Lagoa das Sete Cidades. Um merengue melómano que cobriu o céu e dividiu a paisagem em três partes: água, montanha e neblina, separados em partes iguais como os elementos de um doce da casa. O contexto era açucarado, mas a música era adstringente. Durante uma hora a banda do Porto criou uma dissonância perfeita entre som e cenário, com canções (canções?) densas: imaginem uma sessão de meditação liderada pelos The Fall ou um concerto de rock psicadélico ao ritmo do movimento das placas tectónicas. Durante o espectáculo a plateia reagia com um headbanging suave, como se estivéssemos todos a concordar com o que não estava a ser dito. O concerto terminou, os 10000 Russos agradeceram ao público, pediram uma salva de palmas para a paisagem – que fez a primeira parte, a segunda parte, por aí fora – e as nuvens continuaram a pairar, como que a exigir um encore.

Terminava mais um Tremor na Estufa, happening musical que levou toda a gente ao túnel da Lagoa das Sete Cidades – o ralo de banheira daquele conjunto de lagoas, que se abre quando as nuvens, aborrecidas pela falta de prog-rock, despejam muita água na cratera.

Já se disse muitas vezes que o grande cabeça de cartaz do Tremor é a ilha. É uma definição certeira, mas que está ameaçada. Enquanto o festival se espalhava por Ponta Delgada, Sete Cidades e Ribeira Grande, um grupo de pessoas sorteado ao acaso foi à ilha de Santa Maria ver um concerto surpresa dos Boogarins. Pode o Tremor vir a ser um festival bi-céfalo, com S. Miguel e Sta. Maria como cabeças de cartaz? Fica a ideia.

A surpresa do Tremor foi um concerto dos Boogarins numa ilha mágica

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Foi na Ribeira Grande que se concentraram os concertos da quarta noite de estremecimentos. E a cidade parece feita à medida para este ou outros festivais: o Largo Gaspar Fructuoso tem um coreto, umas escadas que formam um anfiteatro e a Cervejaria Cascata, ali ao lado, serve uma das melhores imperiais do Atlântico e uma bifana capaz de alimentar três pessoas. Foi nesse largo que vimos os We Sea, banda açoriana que conseguiu pôr três indivíduos de sobriedade alternativa do seu território de origem (já não se diz “bêbado da aldeia”) a dançar.

O festival seguiu do centro da Ribeira Grande para o Arquipélago, um centro cultural belo e imponente, o tipo de sítio para onde nos queremos refugiar numa Terceira Guerra Mundial, com concertos de José Valente, Paisel e Aisha Devi, entre outros.

Mas logo no início da noite o Tremor teve um dos seus momentos mais belos. A banda da Escola de Música de Rabo de Peixe juntou-se a Francão, o músico que se apresenta com o nome O Gringo Sou Eu, para um concerto que foi sendo preparado nas últimas semanas. Nenhuma das pessoas que esteve no belíssimo Teatro Ribeiragrandense tem dúvidas: foi o concerto mais bonito do mundo. Numa noite de Primavera com a temperatura a rondar os 20ºc, existe outra explicação para termos ficado arrepiados?

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Já se repetiu muitas vezes que “Tremor é amor”. A frase é bonita, pode estar impressa numa T-shirt ou tatuada numa omoplata. E é verdadeira. Este festival tem mais coração do que qualquer outro evento que junta pessoas à volta de música. E faz-nos dar graças por existir a dorsal meso-atlântica, os vulcões e as pessoas que se lembraram de inventar uma coisa tão bela.

O Tremor acaba este sábado e está oficialmente esgotado.

O Observador viajou a convite da Azores Airlines, da Visitazores e do Neat Hotel Avenida.