“Continuamos a ser desrespeitados constantemente nos atrasos dos concursos e na forma pouco clara como os subsídios são atribuídos”, afirmou o ator Nuno Lopes no domingo à noite, ao agradecer o Prémio Sophia que lhe foi atribuído na categoria de Melhor Ator Principal pelo filme “São Jorge”, de Marco Martins. A referência aos concursos públicos do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) chegou assim à cerimónia dos galardões da Academia Portuguesa de Cinema — que decorreu no Casino Estoril, com transmissão em direto na RTP2.
“Este filme é sobre um período muito negro da nossa história recente: a troika e a austeridade. Esta gala maravilhosa deveria ser uma festa para a cultura, mas na cultura, infelizmente, os anos da crise ainda não passaram. Este não é o discurso que gostaria de fazer, é o discurso que tenho a responsabilidade de fazer”, disse Nuno Lopes, que leu o discurso durante cerca de três minutos perante uma plateia de profissionais de cinema, que o aplaudiram. “A cultura é uma responsabilidade do Estado, juntem-se a nós e façam a vossa parte, senhores governantes, ainda vamos a tempo”, sublinhou.
A polémica sobre os concursos do ICA dura há vários anos e reacendeu-se nos últimos meses. Levará nesta terça-feira representantes da Plataforma do Cinema ao Palácio de Belém, onde serão recebidos por Marcelo Rebelo de Sousa com o objetivo de exporem as “reservas do setor” quanto ao novo decreto-lei que regulamenta a Lei do Cinema. Os profissionais não querem que os concursos tenham qualquer intervenção de um órgão consultivo do Governo, a SECA – Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual.
“Pretendemos sensibilizar o Presidente da República para o facto de não se conhecerem processos de concursos públicos em Portugal onde os direta e indiretamente interessados intervêm na nomeação dos júris ou comissões de avaliação”, explica Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, referindo-se ao facto de terem assento na SECA representantes da RTP, SIC e TVI e de operadores de distribuição, como a Altice, a Vodafone e a Nos.
Marcelo Rebelo de Sousa tem um prazo de mais algumas semanas para apreciar o decreto-lei (cujo teor não é público, por enquanto). Se o promulgar, a Plataforma do Cinema tem um plano B e “espera que o parlamento se pronuncie através de uma apreciação parlamentar que o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista se comprometeram a solicitar”, diz Luís Urbano ao Observador. A figura da apreciação parlamentar estabelece que um mínimo de dez deputados pode tentar alterar um decreto-lei já promulgado pelo chefe do Estado ou até mesmo impedir que este vigore.
Por outro lado, se a regulamentação for vetada por Marcelo, “muitas coisas deverão acontecer”, diz o produtor de O Som e a Fúria, deixando a salvaguarda: “Seguramente que não abrir concursos não pode, nem deve, estar em cima da mesa, não há razões que possam sustentar uma interrupção dos concursos de 2018.”
A regulamentação da Lei do Cinema foi aprovada em Conselho de Ministros a 22 de fevereiro e prevê que a nomeação de júris para os diversos concursos anuais de financiamento seja uma competência “da exclusiva responsabilidade do ICA, apenas com consulta prévia, não vinculativa, à SECA”, disse o ministro da Cultura, Castro Mendes, no dia da aprovação. Trata-se de uma alteração ligeira à regulamentação de 2013, que ainda vigora. Produtores, realizadores e outros profissionais estão contra as atuais e as novas regras. Também têm assento na SECA, mas recusam indicar nomes de jurados.
“É caso único entre os países parceiros europeus e entre os países de todo o mundo que adotam sistemas de incentivos públicos de fomento das artes cinematográficas e audiovisuais”, sustenta Luís Urbano.
A Plataforma de Cinema quer júris indicados apenas pelo ICA, através, por exemplo, de uma bolsa de jurados, renovável todos os anos. “Não podem ser nem os realizadores a indicar nomes, porque conhecem sempre alguém de quem foram alunos ou são amigos ou com quem já trabalharam, nem as empresas de audiovisual, que estão em igual situação de conflito de interesses”, justificou ao Observador Filipa Reis, presidente da Associação Portuguesa de Realizadores.
A audiência com o Presidente da República foi pedida pela Plataforma do Cinema, que reúne associações profissionais, festivais de cinema e sindicatos e que tem sido a voz mais crítica nesta matéria. O encontro está marcado para terça, às 17h30. Vão estar presentes Cíntia Gil (diretora do festival DocLisboa), os realizadores Miguel Gomes e João Salaviza (da Associação Portuguesa de Realizadores) e Luís Urbano (enquanto representante da Produtores de Cinema Independente Associados ).
No mesmo dia, Marcelo recebe os vencedores dos Prémios Sophia 2018, anunciou no domingo Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema.