De repente, alguma coisa não batia certo. Em novembro do ano passado, Deana Barroqueiro começou a receber mensagens de leitores que lhe falavam do novo filme de João Botelho. A película tinha-se estreado no primeiro dia daquele mês e os leitores diziam-lhe, através do Facebook, que se tratava de uma versão do romance que a escritora tinha publicado alguns anos antes. Mas ela não sabia de nada.

Começou a pesquisar na internet, encontrou entrevistas e artigos sobre o filme e verificou que o realizador afirmava ter feito uma versão da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto – o mesmo livro que a inspirou na escrita do romance O Corsário dos Sete Mares, de 2012. Ficou espantada. Decidiu ir a uma sala de cinema na zona de Alvalade, em Lisboa, para ver o filme com os próprios olhos. E gostou pouco do que viu.

“Fiquei siderada, era o meu romance plasmado na tela. Senti-me espantada e ao mesmo tempo violada. Aquilo foi um presente envenenado”, classifica Deana Barroqueiro, em conversa com o Observador.

“Tenho uma escrita bastante visual e os pormenores que dou no meu livro, as expressões que uso, as personagens, está tudo no filme do Botelho. Ele até segue a ordem dos capítulos do meu livro. Não copiou uma uma pequena coisa. Sem o meu livro, aquele filme não existia.”

“Peregrinação”, de João Botelho, foi financiado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, através de um concurso a que o realizador se candidatou em 2015 com um pedido de 600 mil euros. Também a RTP, a Câmara de Lisboa e Câmara de Almada contribuíram para o financiamento. A obra integra uma sequência que João Botelho tem dedicado à literatura portuguesa, iniciada em 2001 com uma adaptação de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, a que se seguiram versões de obras de Agustina Bessa-Luís, Fernando Pessoa e Eça de Queirós.

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Em abril do ano passado, o realizador explicou à Agência Lusa que o filme “não é” a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, mas apenas uma parte. “Como se fosse uma introdução à leitura” da obra impressa pela primeira vez em 1614.

Os documentos distribuídos à imprensa quando da estreia incluem um texto de Botelho onde este explica: “Aceitei de Aquilino Ribeiro a ideia genial e tão justa cinematograficamente de que o corsário António Faria é um heterónimo de Fernão Mendes Pinto. E roubei a Fausto, com a devida autorização, os originais de ‘Por Este Rio Acima’, que o Luís Bragança Gil e o Daniel Bernardes transformaram em polifonias para voz.” O livro de Deana Barroqueiro não é referido.

[trailer de “Peregrinação”, de João Botelho]

A autora, de 72 anos, é conhecida por escrever romances históricos, sendo um dos mais conhecidos D. Sebastião e o Vidente, publicado em 2006 pela Porto Editora e do qual se venderam mais de 18 mil exemplares, dizem os números oficiais. Filha de portugueses, nasceu nos EUA, em New Haven, estado do Connecticut, e vive em Portugal desde os dois anos. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, foi professora de português e de literatura no Liceu Passos Manuel e publica regularmente desde a década de 90.

Ao escrever O Corsário dos Sete Mares quis afastar-se do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto e romancear cenários, pessoas e situações.

“Li quatro vezes a ‘Peregrinação’ de uma ponta à outra para fazer o terceiro volume da minha saga sobre os Descobrimentos. As cenas que o João Botelho filmou não existem na ‘Peregrinação’, simplesmente não existem. As cenas com prostitutas, a amante, o casamento. É inegável que as foi buscar ao meu livro, mas agora apresenta-as como se fossem de Fernão Mendes Pinto. A Meng foi uma personagem inventada por mim e no filme do Botelho também há uma Meng [interpretada pela atriz Jani Zhao]. ”

A autora entende que o realizador não pode descrever o filme como uma adaptação do livro do século XVII e que deveria ter incluído na ficha técnica uma referência explícita a O Corsário dos Sete Mares”. Acredita que a película “pode induzir em erro” o público, desde logo os estudantes – até porque o filme foi recomendado pela Direção-Geral da Educação.

“Não quero dinheiro, estou-me nas tintas para os direitos de autor. Vivo para a escrita, não vivo da escrita. Bastava-me que ele tivesse referido que adaptou o meu romance”, sublinha.

Deana Barroqueiro nasceu nos EUA em 1945 e vive em Portugal desde os dois anos

O assunto já tem quase cinco meses e voltou agora a ser abordado pela escritora, nas redes sociais, a propósito dos Prémios Sophia 2018, atribuídos pela Academia Portuguesa de Cinema a 25 de março. “Peregrinação” estava nomeado em diversas categorias, incluindo a de Melhor Argumento Adaptado. E o livro de Fernão Mendes Pinto é explicitamente citado pela Academia Portuguesa de Cinema. “Uma fraude”, acusa Deana Barroqueiro.

No Facebok, esta semana, publicou a lista do que afirma serem “as principais cenas” que João Botelho “copiou”:

https://www.facebook.com/deana.barroqueiro/posts/10212306731883273

Ainda em novembro do ano passado, a escritora falou com os editores da Casa das Letras (chancela do grupo LeYa, através da qual publica) e esta entrou em contacto com a Ar de Filmes. A produtora respondeu que o nome de Deana Barroqueiro surge na ficha técnica do filme, nos agradecimentos. Por seu lado, a editora sugeriu que O Corsário dos Sete Mares passe a ostentar uma cinta onde se refira que filme de Botelho “inclui episódios adaptados” desse mesmo romance – cinta que deverá surgir nos exemplares à venda na próxima Feira do Livro de Lisboa, que começa a 25 de maio.

Esta semana o Observador tentou por várias vezes falar com João Botelho através de telemóvel, sem êxito. A produtora Ar de Filmes, dirigida por Alexandre Oliveira, enviou uma declaração através da qual reconhece que o realizador se “inspirou em variadíssimos ensaios e referências à obra de Fernão Mendes Pinto” e “uma delas, efetivamente, foi um livro de Deana Barroqueiro”. Mas esse livro foi apenas “fonte de inspiração para duas ou três cenas dos episódios na China” que surgem no filme.

“Antes das filmagens tentou-se contactar a autora, mas a verdade é que não foi possível. Houve o cuidado de mencionar o nome da autora em primeiro lugar nos agradecimentos do filme e, posteriormente, a produtora foi contactada pela editora do livro em questão para que, em forma de retribuição, fosse possível utilizar imagens do filme para promover a nova edição do livro, o que simpaticamente foi acedido”, lê-se. “Sobre o assunto não faremos mais comentários”, termina a declaração.

Os argumentos são idênticos aos que João Botelho tinha apresentado em dezembro num e-mail que dirigiu a Deana Barroqueiro e que esta citou no Facebook. “Na verdade, o seu romance foi forte inspiração para algumas cenas do filme, as da China”, terá escrito Botelho.

https://www.facebook.com/deana.barroqueiro/posts/10212306721363010

Encolerizada, a escritora diz ao Observador que a missiva do realizador “é um gozo” e classifica a passagem “pensei que a Dr. Deana Barroqueiro ainda estivesse nos EUA” como “um insulto à inteligência”. “Fiz toda a minha vida em Portugal, casei aqui, trabalho aqui e vivo aqui. Tenho dupla nacionalidade, mas nunca escolheria ir viver para a América.”

Mostra-se igualmente desiludida por a mensagem de Botelho lhe ter chegado “em terceira mão”. “Aquilo foi metido num e-mail da produtora, mandado para a minha editora e depois é que me chegou. Até hoje, ele nunca quis falar comigo diretamente”. O sentimento de desilusão estende-se a vários jornalistas, aos quais, garante, enviou informações sobre este assunto. Alegadamente, não lhe responderam “para não admitirem a ignorância de terem escrito que o filme adapta uma obra que afinal não adapta.”

A direção de comunicação da LeYa disse esta semana ao Observador que o grupo e a chancela Casa das Letras se “colocaram, naturalmente, ao lado” de Deana Barroqueiro “desde que, há alguns meses, foram detetadas evidentes semelhanças” entre o filme de Botelho e o romance O Corsário dos Sete Mares. “Essa posição mantém-se”, informou a LeYa, sem adiantar outros pormenores.

Entretanto, a escritora queixou-se por escrito à Sociedade Portuguesa de Autores, de que não é sócia, e à Academia Portuguesa de Cinema. Mas não pensa recorrer a tribunais. “Se me meter em processos não tenho paz de espírito para escrever e sei que a nossa justiça não funciona”, justifica. “Tenho 72 anos, não estou a inventar uma história para me fazer famosa, nunca precisei de truques para promover a minha escrita”, remata.