A Quinta da Ribafria, em Sintra, é por estes dias a casa do explorador Fernão Mendes Pinto, autor do livro Peregrinação, “um tratado português” que o realizador João Botelho decidiu adaptar para cinema. O filme “não é a ‘Peregrinação’ de Fernão Mendes Pinto”, mas é uma parte, “como se fosse uma introdução à leitura” da obra, disse o realizador momentos antes do arranque das filmagens no início desta semana.

“Peregrinação” é um livro “de memórias notável”, que começou a ser escrito alguns anos depois de o explorador ter regressado do Oriente. Aos 67 anos, o realizador considera ter “o dever de pegar em textos importantes na Cultura e na Literatura portuguesas”. Esse trabalho começou em 2001 com uma adaptação de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, seguiu-se A Corte do Norte (2009), de Agustina Bessa-Luís, Livro do Desassossego (2010), de Fernando Pessoa, e Os Maias (2014), de Eça de Queirós.

Agora decidiu pegar em Peregrinação, impresso pela primeira vez em 1614, “um dos maiores textos da escrita portuguesa, um tratado português”, que é um relato da presença dos portugueses no Oriente e uma crónica de viagens de duas décadas de vivência de Fernão Mendes Pinto. “De repente apareceu-me a ideia de fazer uma gesta portuguesa, contada de um ponto de vista muito ambíguo, porque é crítico e distante”, disse.

O realizador recorda que, regressado do Oriente, Fernão Mendes Pinto “tentou tudo para conseguir dinheiro na corte portuguesa, mas não conseguiu”.

“E de repente desata a escrever um livro alucinado e alucinante, uma viagem incrível que tem muita fantasia e muita exageração, mas também tem muita verdade”, referiu. As aventuras passam-se no Oriente e apesar de grande parte das filmagens serem feitas em Portugal, no ecrã será como se tudo tivesse sido registado do outro lado do mundo: “Não é verdade, o cinema é mentira. Mas a ideia da verdade está lá”.

João Botelho e uma equipa reduzida (produtor, diretor de fotografia e um assistente) estiveram no verão passado “a filmar todos os fundos” em sete cidades chinesas, no Japão, na Malásia e no Vietname. Além dos fundos, a equipa fez “quatro documentários sobre os locais do Fernão Mendes Pinto como estão hoje”.

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Em Portugal, além da casa de Fernão Mendes Pinto, João Botelho vai filmar, entre outros, uma nau portuguesa em Vila do Conde, uma Vera Cruz no Arsenal do Alfeite, em Almada, o cais palafítico da Carrasqueira, na Comporta, e “coisas em Sintra como se fosse em montanhas da China”. “E deus nos ajude”, desabafou. O filme é protagonizado por Cláudio da Silva, com quem Botelho já tinha trabalho em “Filme do Desassossego”. Além de Fernão Mendes Pinto, o ator veste ainda a pele de António Faria, “um corsário terrível que decapita, viola, rouba, tudo em nome de deus”.

“O Aquilino Ribeiro [que escreveu uma adaptação de ‘Peregrinação’] diz que [Fernão Mendes Pinto] inventou um heterónimo, o António Faria, que existiu mesmo. Mas [Fernão] pôs-se fora do livro e assiste à barbárie do António Faria”, afirmou o realizador. Além das personagens do livro, o realizador inventou uma outra, “uma espécie de Sancho Pança [personagem do livro ‘Don Quixote de la Mancha’, de Miguel de Cervantes], que é um intérprete, um malaio que sabe as línguas todas”.

Do elenco fazem também parte, entre outros, Catarina Wallenstein, Pedro Inês, Maya Booth, Cassiano Carneiro, Rui Morisson, Jani Zhao e Zia Soares. Do filme fará também parte “Por este rio acima”, “obra notável” do músico Fausto. “Os textos são todos do Fernão Mendes Pinto, que ele escreveu em poesia e musicou com música popular. [No filme] há um coro que distancia as coisas, que de vez em quando canta a desgraça e a alegria”, contou.

A rodagem decorre até ao final de maio e no início de novembro o filme estreia-se em sala. Conseguir financiamento “não foi fácil”, disse João Botelho. “Estamos a metade e o produtor está a arriscar muito, mas pode ser que corra bem”, disse o realizador, acrescentando ter ganhado o concurso do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), “que é metade do dinheiro do filme”, e ter o apoio de câmaras municipais, como a de Sintra e a de Vila do Conde, para além da RTP. Há ainda a hipótese, “que ainda não está fechada”, de uma coprodução com a China e até com a Malásia.