Em Fevereiro, a Gucci conseguiu quebrar a monótona unanimidade criada em torno das coleções de moda quando fez os modelos desfilarem carregando na mão ou debaixo do braço réplicas hiper-realistas das suas próprias cabeças, ou estranhos animais de estimação como dragões e cobras. As metáforas estéticas do designer Alessandro Michele parecem obrigar-nos a questionar a importância (ou falta dela) daquilo que carregamos connosco. Tornadas o zénite das bloggers, instagramers e influencers, as malas passaram a simbolizar também um certo vazio que nem as fortes injeções publicitárias conseguem esconder. Ao colocar a cabeça (o cérebro) no lugar da mala, Michele faz uma escolha clara: o triunfo do pensamento e da imaginação sobre o culto dos objetos.
Ora falar nas malas da Reclusa não é seguramente um mero exercício retórico sobre estilo, tendências, obsessões ou desejos. E, nesse sentido, estas malas, concebidas pela artesã e designer Filipa Brito e Abreu e feitas no Estabelecimento Prisional de Tires, respondem ao repto da Gucci: não são meros objetos de moda, são pensamento, criatividade com rédea solta, humanismo, ecologia, liberdade, empoderamento, vida. Não há duas iguais mesmo dentro de um modelo, são totalmente feitas à mão com restos de tecidos e peles que a industria têxtil desperdiça.
Cada uma integra orgulhosamente as cicatrizes, as dissonâncias e as irregularidades dos materiais utilizados, incorporadas na perfeição numa peça executada com o máximo rigor. Ao rejeitarem essa perfeição geométrica das “It Bags” de luxo, ao conhecerem as predisposições sazonais da moda, mas não correrem para as seguir ou copiar, as mulheres que fazem a marca Reclusa estão a abrir para si mesmas e para nós um espaço de celebração da diferença, do inesperado, da superação dos limites. Um espaço amplo que está presente no slogan desta marca: “Made to Break”.
Quantos horizontes cabem dentro de uma mala?
O nome da marca fala-nos do seu começo mas não do seu fim; nasceu no lado de dentro do Estabelecimento Prisional de Tires, em 2010, pela mão de Inês Melo, que percebeu que era fundamental que a inserção social das mulheres detidas começasse ainda na prisão e que o trabalho era a melhor forma de lhes dar competências intelectuais, sociais, relacionais para a sua vida futura. Criou então a associação de solidariedade social Reclusa e a ela se juntou Madalena Mantas, advogada que hoje se dedica a tempo inteiro à associação.
Começaram por fazer malas sem grandes preocupações com design, criação de uma marca, posicionamento no mercado, etc. O Centro Comercial das Amoreiras emprestava-lhes as lojas temporariamente vazias e durante cinco anos foi assim que as malas de pano iam chegando ao público. “Em 2015 percebemos que teríamos que fazer mais ou acabar com a Reclusa”, conta Madalena, “foi aí que decidimos criar mesmo uma marca com identidade, com carisma, que pudesse concorrer num mercado renhido para que dentro da cadeia o projeto continuasse vivo, a ajudar aquelas mulheres”.
O reposicionamento cimentou-se com a vinda, em setembro de 2017, da designer de moda e artesã, Filipa Abreu, que durante anos foi o rosto da marca Caravana Bazaar, em Vila Nova de Milfontes. Com ela trabalha ainda a família Godinho, uma equipa de artesãos de pele certificados, que ensinam o oficio às reclusas. Os primeiros resultados foram apresentados em março no Museu da Eletricidade, em Lisboa: uma coleção inspirada no mar, a meio caminho entre o luxo e o artesanato.
Cada modelo tem apenas entre 5 a 7 exemplares e assina-se com o mote “Break the Wave“. O que se traduz como quebrar as barreiras do desperdício, “do estigma social das reclusas quem em Portugal ainda é muito difícil de ultrapassar”, quebrar a forma “condescendente” como se olham os produtos oriundos do trabalho social e quebrar as correntes da prisão através do trabalho como alicerce do seu lugar em sociedade.
A coleção junta de forma inusitada texturas, padrões, formas. Joga com ideia de reversibilidade e transformação e tem malas que se podem usar ao ombro ou na cintura. Outras que aliam o sofisticado e o prático, em carteiras que podem ser micro malas. Há ainda as “tote bags” feitas a pensar em mulheres que têm muitos filhos pequenos em redor e que se transformam em mochilas ou sacos de praia. O conjunto tem um sopro “boho-chic”, é perfeita, por exemplo, para festivais de verão, viagens, passeios ao ar livre, noites quentes. Cada peça vem com um pequeno presente, também feito em Tires: uma “shopping bag” de algodão, branca e preta com o slogan da marca e que, na sua despretensão e força do repto “Made to Break” se torna também um objeto irresistível.
O primeiro negócio 100% social e 100% português
Esta é uma história de mulheres que lutam por e com outras mulheres sem estenderem a bandeira do feminismo mas sim a da empatia humana. Um dos rostos é o de Liliana Rodrigues, que administra a nova loja da marca, na rua das Amoreiras: “Dentro da cadeia o relógio não anda, nós desesperamos para ter qualquer coisa que nos ocupe”, conta ao Observador. Já está em liberdade há 4 anos e foi na Reclusa que encontrou o seu plano de vida. “Em Tires estava detida num pavilhão onde não tinha acesso ao trabalho na Reclusa mas assim que sai de lá vim bater-lhes à porta”, recorda. Trazia o 9.º ano feito em Tires, começou por trabalhar no atelier mas o seu jeito para organizar e fazer contas levaram a que a colocassem a gerir a loja. Hoje já domina as folhas de excel e é o braço direito do voluntário que faz a contabilidade da associação.
Na Reclusa trabalham todos em regime de voluntariado. Só Liliana, a designer e as artesãs de Tires recebem ordenado: “Aqui foram-se juntando pessoas de todas as idades, desde os 20 aos 70, há estudantes, há reformados. Ao todo somos 11 a trabalhar na Reclusa”, explica Madalena Manta. “A ideia é alargar o raio de ação, para que possamos integrar mais reclusas, quer em Tires, quer depois no regresso à vida cá fora, em estágios profissionais. Todo o dinheiro feito com a venda das malas reverte par a expansão do programa, o que faz dele o primeiro negócio social existente no nosso país”.
“A Reclusa posiciona-se no mercado como uma marca de moda com uma história muito especial, já que através do seu negócio concede uma segunda oportunidade a reclusas e ex-reclusas. Os seus lucros revertem na totalidade para o objetivo principal, que se mantém inalterado desde o início da marca: apoiar reclusas dentro do Estabelecimento Prisional de Tires, dando-lhes formação e capacitação na confeção de inúmeras peças das coleções, e reinseri-las na sociedade, recebendo-as nas instalações da marca quando saem da prisão, encaminhando-as e fazendo a ponte para uma nova vida socioprofissional de sucesso.”
Uma das ambições da instituição é reconverter um pavilhão abandonado da cadeia de Tires em oficina e atelier, para que as mulheres que integram o projeto tenham um horário e uma rotina de trabalho, com os formadores e a designer. Para isso estão a concorrer às verbas atribuídas pelo BPI Solidário. “Mas se não conseguirmos a verba vamos procurar outras formas”, afiança Madalena.
“Quando saem da cadeia, muitas destas mulheres estão absolutamente sós, contam apenas com o Rendimento Mínimo que nem dá para pagar uma casa, os empregadores rejeitam-nas por elas não terem o registo criminal limpo e os projetos do Centro de Emprego podem demorar 7 meses a dar resposta. Entretanto, muitas já reincidiram no crime”, conta a responsável pela comunicação e marketing da marca. “Terem passado por um estágio numa marca, num atelier, é uma forma de abrir portas que de outro modo lhes estarão sempre fechadas, porque Portugal é ainda um país muito preconceituoso”.
É contra este país de preconceitos e pouco disponível para dar segundas oportunidades que a Reclusa também luta. São portanto muitos horizontes, muitas conquistas que fazem destas malas peças que podemos ter orgulho em ostentar.