Uma guerra sai cara. Fazer um filme de guerra também. Portugal participou na Primeira Grande Guerra e o Corpo Expedicionário Português (CEP) fez o que pode num conflito em que entrou mal preparado. O momento marcantes foi a Batalha de La Lys (França), onde Portugal sofreu uma pesada derrota. No passado dia 9 de abril assinalou-se o centenário desse momento, que viu nascer umas das figuras mais conhecidas do imaginário CEPiano: o Soldado Milhões, que chega ao cinema esta semana.

Milhões, ou melhor, Aníbal Milhais (1895-1970), ficou conhecido por ter aguentado nas trincheiras, sozinho, com a sua Luisinha (diminutivo de Luísa, nome dado pelos portugueses à metralhadora Lewis), a investida alemã: “Tu és Milhais, mas vales Milhões!”, reza a história que foi assim que o comandante Ferreira do Amaral o saudou. Sobreviveu e, pelo caminho, salvou a vida de muitos portugueses e ingleses. É essa façanha que se conta em “Soldado Milhões”, longa-metragem de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa, com argumento de Jorge Paixão da Costa e Mário Botequilha. É um contributo para a mitificação do Soldado Milhões, intercalado entre o período de guerra e os anos que se seguiram, durante a década de 1940, onde se vê o militar confrontando com o heroísmo e a memória da guerra.

No cinema a guerra exige efeitos visuais. E efeitos visuais exigem tempo e dinheiro, algo que por vezes falta na produção de filmes portugueses. Contudo, em “Soldado Milhões” eles estão lá e dão nas vistas. Em conversa com Jorge Carvalho, 35 anos, um dos responsáveis pelos efeitos visuais, percebe-se a sua preocupação em balizar o que se vê à escala de Portugal. Algo justificado pela falta de mercado e dos meios do país. Contudo, segundo se percebe, não falta mão-de-obra qualificada para levar o trabalho avante. Falou-se sobre o “Soldado Milhões” e esta área técnica no mercado português e não só.

[o trailer de “Soldado Milhões”]

Como é que começou a trabalhar em efeitos visuais?
Há mais de dez anos quando terminei o curso. Estudei cinema e audiovisual, no curso de Tecnologia e Comunicação Audiovisual, o formato mudou um bocado nos últimos anos, mas pertence ao Instituto Politécnico do Porto. Eles ganharam o prémio Sophia recentemente, a escola está outra vez a borbulhar. Teve ali um período apertado, por falta de financiamento, como outros politécnicos. Comecei com curtas e alguns filmes. Rapidamente percebi que em Portugal é muito difícil trabalhar para cinema, em termos de sustentabilidade económica, e passei para a publicidade, que é o que tenho feito praticamente desde que comecei. Efeitos visuais à mesma, mas também muita animação. Voltei ao cinema há cerca de três, quatro anos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na publicidade trabalha em alguma empresa ou é freelancer?
Sou freelancer e trabalho para quase todas as agências cá do sítio. Basicamente, estou sediado no Porto, mas não tenho praticamente nenhum cliente no Porto, porque toda a massa crítica e económica está em Lisboa e noutros sítios. Tenho o meu trabalho dividido entre 50% em Portugal e 50% lá fora.

Para onde lá fora?
Nomeadamente Reino Unido, Estados Unidos, mas tudo em publicidade, nada na área de cinema.

Na área de cinema nunca fez nada para fora?
Não, nunca fiz nada para fora. Embora a minha equipa tenha gente que trabalha lá para fora, para produções norte-americanas. Porque hoje em dia nestas áreas mais criativas faz sentido que a tua estrutura seja modular, que não seja uma coisa estanque, rígida, onde tenhas que pagar ordenados. Vais adicionando pessoas e talento conforme a magnitude dos projectos. Duas das pessoas que costumam trabalhar regularmente comigo estão no Reino Unido e trabalham com muita frequência para duas casas de pós-produção que vão fazendo alguns filmes norte-americanos. Decidiram ir para fora, porque cá dentro é um mercado completamente diferente: valores, prazos. É completamente diferente.

Como é que surgiu a oportunidade de fazer os efeitos visuais para o “Soldado Milhões”?
Eu já tinha feito um filme para Ukbar Filmes, há um ano, que foi o “Al Berto” [de Vicente Alves do Ó]. Nada desta magnitude mas teve alguns efeitos especiais interessantes: é um filme de época passado nos anos 1970. A Pandora [da Cunha Telles, fundadora da Ukbar Filmes, com Pablo Iraola] já me tinha falado deste projecto. Comecei a trabalhar com ela na pré-produção, a tentar perceber como poderíamos filmar isto. E fomos andando até ao resultado final. Entrei numa parte inicial do projecto, para tentar perceber como poderíamos filmar cenas de guerra em Portugal, que não é fácil.

E para si foi um desafio fazer um filme desse género em Portugal? Não é habitual produzirem-se filmes de guerra por cá.
Muito, acho que para toda a gente. Não só para mim, mas para o director de fotografia [José António Loureiro], para os realizadores, mesmo para a Pandora e o Pablo. Acho que todos tiveram uma dose saudável de loucura para entrar num projecto deste género. Há várias condicionantes, em termos de orçamento ou de tempo que podemos alocar ao projecto. Foi um desafio para toda a gente, mesmo para as pessoas que trabalharam comigo, também foram ao limite.

Pode explicar um pouco como foi o processo de trabalho? Qual o seu papel aqui, como entra nas filmagens, como isso se processa e como acontece o trabalho a seguir.
Isso é um lado bom de trabalhar com a Ukbar. É uma produtora de cinema um bocadinho diferente das outras, dão bastante liberdade criativa. Apesar da minha função ser considerada muito técnica, porque normalmente não somos muito criativos. Se trabalhares lá para fora, automaticamente dão-te um breakdown de cada shot e o que tens de fazer em cada shot, mas aqui houve uma liberdade muito grande. Tanto da produtora como dos realizadores e do director de fotografia. Deram-me muita liberdade para podermos criar as cenas de guerra, por assim dizer. Basicamente, comecei por preparar as filmagens, com o director de fotografia, os dois realizadores e a assistente de realização [Maria João Matos Silva]. Tentámos perceber como poderíamos filmar algumas cenas, não só as cenas de guerra, mas, por exemplo, havia uma cena em que era um acampamento português em que tínhamos de duplicar os soldados e as tendas também.

Fizemos um trabalho algo grande de pré-produção, de perceber onde poderíamos colocar as câmaras, que objectivas é que se iriam utilizar, que shutter é que iríamos usar para filmar. E isso implicou que eu estivesse na rodagem, tanto eu como o Carlos Amaral, que foi o meu parceiro nisto. Fomos duas pessoas, sempre, ao longo do processo. Estivemos na rodagem, sendo que o Carlos tem mais experiência de rodagem – porque também é realizador -, para garantir que o nosso trabalho seria minimamente pré-preparado, para que não tivéssemos muitos problemas na pós-produção e garantir que as filmagens correriam da forma mais suave possível.

[um vídeo com exemplos do trabalho feito sobre os efeitos visuais em “Soldado Milhões”]

[jwplatform kXwMDCYr]

E depois das filmagens?
Passou para o editor, o João Braz. Editou aquilo e sentiu que tinha de ter muitas cenas de guerra e tivemos de recriar alguns planos de zero, para preencher ainda mais. Filmaram-se cenas de guerra mas tivemos de criar alguns planos extra para a reforçar ainda mais e, aí sim, entrou uma equipa maior. Além de mim e do Carlos, que éramos os coordenadores da pós-produção e fizemos o trabalho quase todo, alargámos a estrutura para compreender uma série de cenas que exigiam muita rotoscopia, recortar os soldados e alguma duplicação, e a criação de alguns 3D. Sendo que essa estrutura foi um bocadinho multinacional, trabalhámos com búlgaros, britânicos e arménios para chegarmos ao resultado final.

Mas houve muitas explosões nos cenários ou foi tudo feito no pós-produção?
Houve algumas explosões nos cenários. É importante balizar os efeitos para o mercado em que a gente está. Eu tenho consciência do trabalho que foi feito, acho que demos todos o máximo, mas temos de balizar isto no mercado português. Deixa-me fazer esta ressalva: termos grandes casas de pós-produção em Portugal. Não conseguem trabalhar frequentemente para cinema, por uma questão de orçamento, e por isso estão mais alocadas para a publicidade. Posso dizer que muita publicidade internacional vem para cá fazer pós-produção. Temos gente capaz de fazer carros completamente em 3D ou algo do género. Só que por uma questão de orçamento, essas casas de pós-produção trabalham mais para publicidade, porque o cinema não tem assim tanto dinheiro. Irá ter um dia, espero. A pós-produção é uma parte bastante cara no orçamento de um filme. A abordagem da Ukbar foi diferente, quis tentar montar uma equipa modular, que pudesse ser competitiva e competente no que estava a fazer.

Em relação às explosões, houve explosões no décor. Era necessário. Principalmente em situações em que os soldados estavam abrigados nas trincheiras e precisavam de levar com os impactos das explosões em cima deles. É algo muito difícil de emular digitalmente. Mas mais de 70% das explosões foram criadas digitalmente, porque era necessário outro tipo de magnitude em algumas cenas, precisavam de mais explosões, para tornar credível o cenário de guerra.

Muitos dos ambientes em volta nas trincheiras foram feitos digitalmente?
Sim. Aquilo foi filmado no campo de tiro de Alcochete que tinha umas árvores em fundo, todas verdinhas, que não podiam existir. Apesar de não ser um problema extremamente grave, nós optámos, com a equipa, por tirar aquelas árvores. Então tivemos necessidade de reconstruir toda a parte da terra de ninguém. Além disso, criámos investidas de soldados: juntar vários soldados que filmámos separadamente para poder criar uma massa de soldados a correrem em direcção à câmara.

Para si é desafiante fazer algo nesta escala?
Sim, muito. Dediquei cinco meses da minha vida a este projecto.

Qual era o tamanho da equipa para fazer isso tudo?
O núcleo foram duas pessoas, eu e o Carlos Amaral, nós éramos os responsáveis máximos por tudo. E depois alarguei a equipa para um máximo de dez pessoas.

E como foram esses cinco meses?
Tanto para mim como para o Carlos, fisicamente e psicologicamente, foi um desafio. A brincar temos 36 minutos de guerra e fazer 36 minutos de guerra em Portugal é muito desafiante. Cada plano, cada shot, do filme levava uma série de efeitos. Não são só as explosões, é todo um ambiente que se cria ali, de fogos, de fumos, de partículas a voar. Trocas os céus também, porque isto foi filmado em agosto e nós sentimos que se trocássemos o céu ganharíamos ali uma densidade humana maior. Escurecíamos um bocadinho o filme, algo que era necessário. Cada shot estava a levar cerca de trinta a quarenta efeitos. Isso leva o seu tempo. Estávamos a conseguir fazer uma média de dois, três planos por dia. Sendo que fizemos cerca de trezentos planos para o filme e acho que chegámos aos quinhentos com a série. Nem todos com uma complexidade muito grande, mas diria que 120 planos com uma complexidade muito elevada: basicamente só ficava o actor e trocávamos tudo o resto: o céu, colocar a arma a disparar, partículas a voar, explosões ao fundo, fumo, etc.

Quando se está a ver o filme não se tem noção da quantidade de efeitos que há ali.
Sim, completamente. Não há uma noção clara, mas isso é bom, porque é o papel dos efeitos especiais, que passem despercebidos. Se passarem despercebidos, é porque estão relativamente bem feitos. Mas mais uma vez quero balizar: a quantidade e qualidade de efeitos foram feitos com base no mercado que temos em Portugal. Não estou a dizer que o trabalho está extraordinário, estou a dizer que foi feito com condicionantes, há a questão de orçamento, tempo, como equipa. Só para se compreender um bocadinho a coisa, imagina que este filme era feito nos Estados Unidos. Teríamos uma equipa de sessenta pessoas para 4 ou 5 shots. Essa mesma equipa estava no mínimo oito meses a trabalhar. Esse foi o maior desafio, tentar fazer algo credível… por isso é que eu gosto tanto da Ukbar, eles tentam mudar a maneira como o cinema é feito em Portugal. Não têm medo de arriscar e não tiveram medo de arriscar em mim. E isso acho extraordinário.

Imagina-se a fazer algo tão complexo para cinema nos próximos tempos?
Sim, como pode imaginar aprendi muito neste processo. Foi a primeira vez que fiz um filme de guerra. Acho que é a primeira vez que muita gente que trabalhou neste projecto fez um filme de guerra. E há coisas que aprendemos e que agora faria de maneira diferente. Mas teria de ser com uma equipa maior, não me metia com uma equipa tão curta a fazer tantos planos. A Pandora tem uma frase muito engraçada que me costuma dizer: “Jorge, depois disto, só um filme de espaço”. E ela agora deve estar a pensar num guião qualquer para fazer um filme de espaço. Porque realmente depois disto qualquer projecto que possa aparecer parece-me demasiado simples. Porque este foi um desafio muito grande mesmo. Se eu te pudesse mostrar os planos que foram filmados e os planos que estão lá depois, dá para perceber um bocadinho a quantidade de trabalho que cada plano levou. Há planos que foram completamente transformados, por assim de dizer, de raiz.