As obras do pintor Joan Miró, que faziam parte do universo do antigo Banco Português de Negócio (BPN), já passaram para a posse do Estado. A transação realizada no final do ano passado foi feita por 54,4 milhões de euros, a valorização decidida pelo Ministério da Cultura para as 75 obras do artista catalão. O preço teve por base uma avaliação proposta pela Direção-Geral de Património Cultural que teve autorização do ministro da Cultura em maio do ano passado, apesar de a transação só ter ficado concluída no final do ano.
A operação foi concretizada não através de uma venda, mas sim por uma dação em pagamento, realizada entre a Parvalorem, a empresa que herdou os ativos problemáticos do antigo BPN, e a Direção-Geral do Tesouro, confirmou ao Observador fonte oficial do Ministério das Finanças. Na prática, não houve dinheiro envolvido na operação, mas uma espécie de acerto de contas que permitiu ao Grupo Parvalorem fazer uma regularização parcial da elevada dívida à Direção Geral do Tesouro.
O Ministério das Finanças refere apenas o valor de 44,5 milhões de euros atribuído às obras que estavam na posse da Parvalorem, mas a transação envolveu também as obras que estavam na posse de outra empresa do mesmo grupo, a Parups, e que foram avaliadas em 9,8 milhões de euros. A coleção Miró foi assim avaliada em 54,4 milhões de euros nesta transação, a que acresce o IVA de 23%.
Com esta operação, o Estado assegura a propriedade da chamada coleção Miró, concretizando uma decisão política deste Governo que foi consagrada pelo primeiro-ministro em 2016, num despacho onde António Costa afastou de vez o cenário de venda dos quadros.
A venda que não se concretizou
Os Miró estiveram para ser vendidos em 2014 num leilão internacional ainda com o anterior Governo. Perante os protestos da oposição à esquerda, em particular dos deputados do PS, e com diligências do Ministério Público à mistura, o leilão que seria realizado pela Christie’s acabou por ser cancelado no próprio dia em que os interessados deveriam apresentar propostas.
Apesar deste cancelamento, a avaliação apresentada pela leiloeira em 2014 serviu de referência para o preço da transação entre a empresa pública e o Tesouro. Quando ganhou o contrato para vender as obras, a Christie’s estimou um intervalo entre os 33 milhões e os 55 milhões de euros como preço de partida para aceitar licitações. Embora na altura se acreditasse que as obras poderiam atingir um valor mais elevado num contexto de ofertas competitivas, o Ministério da Cultura usou a avaliação mais recente da leiloeira para fixar o preço da coleção. De acordo com informação recolhida pelo Observador, a obra mais valiosa foi valorizada em mais de 8 milhões de euros e é da série Femme et Oiseaux.
As obras do pintor catalão ficaram na propriedade da Direção-Geral do Património Cultural, mas os quadros estão cedidos para exibição ao público à Fundação Serralves no Porto. A coleção já foi exibida em Lisboa e agora está a ser mostrada em Itália.
Contactada pelo Observador, fonte oficial da Parvalorem não fez comentários, mas o relatório de execução orçamental da empresa relativo ao terceiro trimestre do ano passado confirma que a operação estava a ser preparada.
De salientar que a Parvalorem, não procederá à alienação das obras da Coleção Joan Miró, estando a executar todas as diligências, em articulação com a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), no sentido de promover a efetivação da transferência da propriedade das respetivas obras para o Estado. A operação será uma dação em cumprimento de parte da dívida atual da sociedade para a com a sua acionista (DGTF). O valor atribuído às obras de arte será compensado com os créditos que a DGTF detém sobre a Parvalorem. Esta operação, a realizar-se, não implicará o desembolso efetivo de uma quantia monetária, sendo no entanto, sujeita ao IVA à taxa normal”.
Esta dação terá contudo um impacto limitado na redução da dívida da Parvalorem ao Tesouro, que no final de 2016 ultrapassava os 1.900 milhões de euros, em mais de dez empréstimos concedidos desde 2012.
Garantias de empréstimos e um leilão falhado. Quadros ficam no espólio do Estado
A chamada coleção Miró foi parar ao universo do BPN a título de colateral de empréstimos concedidos pelo banco ainda durante a gestão privada liderada por Oliveira Costa. Com a nacionalização em 2008, os quadros passaram para a esfera do Estado, que ficou com o direito de os executar na qualidade de garantias, por incumprimento dos créditos concedidos. Enquanto ativos do antigo BPN, o destino previsto para estas obras era o mesmo do de outros ativos: a venda a privados para abater a enorme fatura paga pelo Estado com a nacionalização do banco. Mas isso mudou com o movimento gerado contra a venda das obras em 2014 e que uniu personalidades da política e da cultura.
As obras do artista catalão são para já o único património do BPN que, por decisão política, será incorporado no espólio cultural do Estado.
Em causa estão 85 obras de Joan Miró que, quando foram parar ao balanço do BPN, como colaterais de empréstimos, foram valorizadas em cerca de 78 milhões de euros.
Apesar de os quadros (também há esculturas) terem ficado fisicamente na posse do Estado com a nacionalização — ficaram guardados num edifício da Caixa Geral de Depósitos que entretanto assumiu a gestão do BPN –, o seu título de propriedade não estava regularizado. Por essa razão, não foi possível prosseguir com uma primeira tentativa de venda, iniciado ainda com o Governo socialista que nacionalizou o BPN. Só em 2013 se conseguiu executar a garantia entregue como financiamento dado a duas sociedades offshore e registar a propriedade dos quadros nas empresas públicas que foram entretanto constituídas para gerir a herança do BPN.
Foi neste contexto que a Christie’s foi escolhida para vender as obras num leilão internacional com um preço base que ia até aos 55 milhões de euros. O processo foi travado no próprio dia do leilão — 4 de fevereiro de 2014 — depois de ter sido emitido um catálogo com as obras e realizado um roadshow com potenciais compradores internacionais. A Christie’s decidiu cancelar a operação, face ao risco jurídico, já que para além da polémica política, foram instauradas ações judiciais para travar a venda. Só em 2017 é que a Parvalorem chegou a um acordo com a leiloeira para rescindir este contrato, o que foi feito sem o pagamento de indemnizações.
Ativos do ex-BPN não chegam para compensar financiamento público
Com a reestruturação do BPN, de forma a viabilizar a venda do banco a privados, o Governo liderado por José Sócrates criou três sociedades públicas — Parvarlorem, Parups e Parparticipadas — que ficaram a gerir o património e ativos ditos tóxicos do banco que não interessavam aos investidores privados. Nestas sociedades, ficaram os créditos mais problemáticos, respetivas garantias, ativos desvalorizados (imobiliário) e participações financeiras em sociedades do antigo BPN. O rendimento obtido com a venda ou recuperação destes ativos tem como destino o reembolso do esforço financeiro feito pelo Estado ao assumir o “buraco” do grupo BPN. Esse esforço foi numa primeira fase financiado pela Caixa Geral de Depósitos, mas o Governo comprometeu-se desde o início a proteger o banco
O modelo então definido, e que no essencial se mantém, estabeleceu que estas sociedades seriam geridas de forma a maximizar o retorno dos ativos que detinham — por venda, recuperação de créditos ou execução de garantias — de modo a obter receitas para pagar os financiamentos concedidos pela Caixa Geral de Depósitos logo após a nacionalização e que mantiveram o BPN a operar como banco. A sua venda que acabou por se concretizar em 2011, mas as condições negociadas com o Banco BIC deixaram do lado do Estado os ativos mais problemáticos. E é a gestão destes ativos, onde estavam incluídos os quadros do pintor Miró, que deve gerar o retorno para pagar os juros e o capital em dívida ao banco do Estado, parte do qual está numa emissão obrigacionista que vence em 2020.
No entanto, ao longo dos anos, o retorno obtido com esta gestão, e que incluiu também a venda de participadas como o BPN Crédito ou o Banco Efisa — um processo que foi recentemente relançado — tem-se revelado insuficiente para pagar os encargos, incluindo juros, com a dívida à Caixa. E é por isso que o Tesouro tem de emprestar dinheiro à Parvalorem.
Os quadros de Miró foram divididos por duas empresas públicas. A Parvalorem recebeu 72 quadros com o valor nominal de 64,4 milhões de euros. Para a Parups foram 13 quadros com um valor de 13,8 milhões de euros. O valor definido na transação com o Estado é inferior a estes montantes, mas as duas empresas tinham reconhecido imparidades (perdas) neste património de quase 33 milhões de euros, considerando as avaliações independentes. Logo o preço definido nesta operação supera o valor líquido que estava registado no balanço destas sociedades.