Título: “Maio de 68. Uma contrarrevolução conseguida”
Autor: Régis Debray
Editora: Dom Quixote

Meio século depois dos protestos desencadeados por estudantes universitários que atingiram o clímax nas ruas de Paris durante Maio de 1968, os acontecimentos são ainda alvo de discussão. Entre o olhar nostálgico sobre o passado cultivado pela geração contemporânea, com tendência para fazer uma leitura romântica e idealizada dos eventos, e a análise distanciada daquilo que realmente sucedeu e das respectivas consequências, o consenso não é simples de encontrar.

Régis Debray é uma das vozes mais polémicas entre todas aquelas que já se pronunciaram sobre o mítico Maio de 68. Filósofo marxista e jornalista, nascido em França em 1940, Debray não participou no movimento que tomou conta das ruas da capital gaulesa, nem o testemunhou. Tinha emigrado em 1965 e apenas regressou ao país-natal seis anos mais tarde “após quatro anos de prisão e dois de vadiagem no exterior”, de acordo com as suas palavras.

Durante aquele período deu aulas de filosofia na Universidade de Havana. Mais tarde, juntou-se, na Bolívia, ao grupo de guerrilheiros liderado por Che. Acabou por ser detido e condenado a 30 anos de prisão. A pressão exercida por eminências como Jean-Paul Sartre e André Malraux acabaram por resultar na libertação de Debray. Refugiou-se no Chile, onde publicou um livro com entrevistas a Salvador Allende, presidente do país entre 1970 e 1973.

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Sobre Maio de 68, Régis Debray expôs o seu julgamento quando se assinalavam dez anos sobre os acontecimentos e é este texto que agora surgiu no mercado português editado pela Dom Quixote, com tradução de Miguel Freitas da Costa. Quando da publicação original, em 1978, a ironia do título, “Modesto Contributo para os Discursos e Cerimónias Oficiais do Décimo Aniversário”, dizia muito sobre o que se podia esperar das ideias de Debray sobre o tema. Sem surpresa, a visão implacável do filósofo causou, na época, comoção, controvérsia e rejeição, de tal forma destoava da versão “oficial” sobre a importância dos eventos e, sobretudo, do seu impacto. Ainda por cima, expressava o veredicto de alguém absolutamente insuspeito de ser um perigoso reaccionário.

Na nova edição, publicada em França em 2008 e que corresponde àquela que agora chegou às livrarias portuguesas, o título é mais explícito. Maio de 68, Uma Contrarrevolução Conseguida resume bem a forma como Debray vê um curtíssimo período da História de França, elevado ao estatuto de momento libertador desencadeado por uma geração de heróis, embora talhados para uma glória efémera e inconsistente.

No prefácio, Régis Debray não deixa margem para dúvidas. Reconhece que, durante a sua ausência, França experimentou algumas mudanças.

“Tinha deixado um país em que as mulheres não podiam abrir uma conta de banco sem autorização do marido, onde o homossexual se escondia, onde os reclusos não tinham qualquer direito” e “reencontrava-o povoado de corpos libertos e de espíritos desanuviados, mas já docilmente submissos aos efeitos da imagem e à aura das grandes fortunas, onde, na rua Souflot, o MacDo substituía o Capoulade, e os trapos, um pouco por toda a parte, as livrarias”, escreve Debray.

A conclusão que retira da sua observação não se fica pelas meias tintas: “A vanguarda francesa (…) será doravante o vagão da cauda americano”.

Afinal de contas, os protestos motivados pelo conservadorismo dos meios académicos e universitários, que alastraram aos trabalhadores das grandes indústrias e resultaram em confrontos que, durante as escassas semanas de Maio, semearam o caos nas ruas de Paris mas que, no saldo final, não provocaram vítimas mortais susceptíveis de serem transformadas em mártires de uma causa, conseguiram algumas mudanças relevantes. Mas, no essencial, defende Debray, tratou-se de uma oportunidade bem aproveitada para o capitalismo sair vencedor e abrir as portas à “americanização” de França.

“Maio de 68 é o berço da nova sociedade burguesa”, afirma Régis Debray, e “se ela não o sabe ainda claramente, está na hora de lho explicar”. Os eventos representaram a ocasião em que a França “industrial e tecnológica”, em rápida expansão no período que sucedeu à Segunda Guerra Mundial, e a França “das mentalidades e dos comportamentos”, marcada pela “lentidão das longas durações”, acertaram o passo e superaram uma clivagem “aberrante, verdadeiramente insustentável”.

Gabriel Garcia Marquez cumprimenta Regis Debray, junto à então primeira dama francesa, Danielle Mitterrand (STF/AFP/Getty Images)

No final dos anos 1960, as universidades estavam amarradas ao passado, com “estruturas e programas de ensino inadequados ao novo mercado de trabalho”, num sistema que transmitia valores a que os empregadores já não aderiam. Ao forçar as mudanças culturais, o movimento de Maio de 68 esteve longe de concretizar uma revolução, mas proporcionou ao capitalismo francês as alterações de que necessitava, a contrarrevolução conseguida.

“A França da pedra e do centeio (…) recebia ordem de despejo para que a do software e do supermercado, das news e do planning, do know-how e do brainstorming pudesse expor os seus bons negócios , por fim em sua casa”, diz Régis Debray. Por debaixo das pedras da calçada havia uma praia, como garantia um dos mais famosos slogans dos estudantes parisienses, mas era a praia da publicidade, contrapõe o filósofo. E, sem piedade perante os pontos de vista com tendência para a melancolia que se segue ao desmoronamento das ilusões, sintetiza:

“A estratégia de desenvolvimento do capital exigia a revolução cultural de Maio”.

Os acontecimentos que tiveram o epílogo em Maio de 68 começaram a desenvolver-se no Outono do ano anterior, em Nanterres, numa extensão da Universidade de Paris. Os protestos, bem como os confrontos entre estudantes e polícia, acabaram por se transferir para a Sorbonne, na capital francesa. A retórica marxista dominou os discursos de líderes como Daniel Cohn-Bendit, mas sob esta máscara escondia-se um espírito “essencialmente anarquista” que alimentava o objectivo imediato de “remoção” e “humilhação” da autoridade, escreveu Tony Judt em Pós-Guerra, História da Europa desde 1945.

Não admira que diferentes análises convirjam num ponto quando olham para uma sucessão rápida de eventos que tiveram a aparência de uma revolução, mas que não dispuseram da substância necessária para merecer a qualificação. Georges Marchais, na época líder do Partido Comunista Francês, chamou-lhe uma “festa” em que os filhos da burguesia parisiense apedrejaram os filhos dos pobres, apanhados no papel de agentes da autoridade que era contestada. O próprio Daniel Cohn-Bendit confessaria que, a 11 de Maio, quando os estudantes levantaram barricadas nas ruas de Paris, “a ideia de partida era fazer uma grande festa no pátio da Sorbonne”. Sem estratégia, nem conteúdo, a pretensa “revolução” esgotou-se, com estragos materiais mas sem tragédia.

“A França não tem petróleo, mas tem ideias”, afirma Régis Debray. “No fim de Maio, infelizmente, precisava mais de gasolina do que de ideias ‘sublimes’” e “foi a instância económica que derrotou a não-política de Maio”, acrescenta, sarcástico. No dia 30, uma multidão encheu os Campos Elísios numa contramanifestação e, nas eleições legislativas seguintes, os partidos que sustentavam o presidente Charles De Gaulle alcançaram uma vitória esmagadora e uma ampla maioria parlamentar.

“Os trabalhadores voltaram para o trabalho” e “os estudantes foram para férias”, conta Tony Judt. Régis Debray assinala que “Paris fez barricadas com carcaças de automóveis” mas que “foi o automóvel individual que triunfou sobre os fantasmas das barricadas”. Uma “crise no sistema” foi confundida com uma “crise do sistema”.

A leitura dos acontecimentos de Maio de 68 feita por Debray não vibra de fervor nem de delírios revolucionários. Tem a grande vantagem de ser lúcida, distanciada e desafiadora, dentro de um quadro de referências ideológicas que, naturalmente, condicionam a análise. Saber se os eventos estenderam a passadeira para o triunfo da contrarrevolução burguesa e capitalista, como defende o autor, ou se o fim da festa correspondeu à necessária reposição da normalidade democrática, que provavelmente teria sido um processo mais complexo no caso de a retórica marxista e o maoismo partilhado pelos líderes do movimento tivessem saído vencedores, já é menos pacífico.