Há muito se suspeitava de que a informação que levou o Diário de Notícias a denunciar um plano de Belém contra o Governo de José Sócrates — em setembro de 2009, num episódio que ficou conhecido como o “caso das Escutas” — tinha partido de São Bento. Esta quinta-feira, o antigo diretor do semanário Expresso foi mais concreto: “Essa história aparece toda no Expresso, enviada pelo gabinete do primeiro-ministro”, disse Henrique Monteiro na SIC Notícias.
Uma jornalista do semanário recebeu a informação a uma quinta-feira, um dia antes do fecho da edição. Num dossier estavam as trocas de e-mails de um ano antes, entre jornalistas do Público, em que se dava conta de que das suspeitas de Belém de que o Presidente da República ou elementos da Presidência estavam a ser vigiados e que a ordem partira de São Bento. Informação com o sentido daquele que sustentara textos publicados um mês antes naquele diário e que tinha sido passada por Fernando Lima, homem de profunda confiança do então Presidente da República, Cavaco Silva.
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“Isso é tudo enviado por uma pessoa ligada ao Sócrates e nós — a direção do Expresso, na altura, era eu [Henrique Monteiro], o Ricardo Costa, o João Garcia, o Nicolau Santos, o Joao Vieira Pereira – olhámos para aquilo”, disse o ex-diretor do semanário na SIC Notícias. “Era uma coisa de um ano antes, que saía antes das eleições de 2009 para queimar o Cavaco e, por essa via, a candidata do PSD”, Manuela Ferreira Leite, que defrontava José Sócrates. Henrique Monteiro continua a descrição daquele dia. “Dissemos: ‘Temos de dizer de onde isto aparece, porque isto não foi investigado por nós e é uma violação de correspondência’”.
Os e-mails tinham sido trocados entre o correspondente do Público na Madeira, Tolentino Nóbrega, o jornalista Luciano Alvarez e o então diretor do Público, José Manuel Fernandes (hoje, publisher do Observador).
A direção reuniu e chegou a acordo: só se publicava a história nas páginas do semanário se a fonte da informação aceitasse uma referência, ainda que genérica, a São Bento. Não aceitou e a peça caiu. Mas, na manhã seguinte, o Diário de Notícias surgiu nas bancas com um fundo negro e a figura de Fernando Lima em destaque, com o título: “Assessor do Presidente encomendou caso das escutas.”
“Isto também dá um bocado o retrato do que é a imprensa portuguesa, dá um bocado o retrato do que é a independência de algumas pessoas”, atirou Henrique Monteiro perante as câmaras. “Ele tentou vingar-se do Público de uma forma absolutamente inacreditável”, diz Monteiro sobre José Sócrates.
“Notícia era relevante para a minha carreira”, diz ex-diretor do DN
A primeira reação de Marcelino foi feita logo na quinta-feira à noite, através das redes sociais, e visou diretamente Henrique Monteiro.
https://twitter.com/joao__mar/status/994695651551301633
Ao Observador, o ex-diretor do DN diz que a fonte da informação era secundária face ao que estava ali em causa. “Era uma matéria absolutamente relevante quer do ponto de vista jornalístico quer político”, continua a defender, garantido que publicaria a mesma peça, nos mesmos termos, “até ao fim da vida”.
O então subdiretor Nuno Saraiva foi, segundo Marcelino, quem recebeu o dossier. Perante a sensibilidade daquilo que estava em cima da mesa — com informações que visavam uma guerra entre Belém e São Bento e uma alegada tentativa de passar uma história vigilância com serviços de informações à mistura —, a cúpula do Diário de Notícias reuniu-se na redação para discutir a posição a tomar. João Marcelino garante que nunca perguntou de onde vinha a informação.
Mas também pegou no telefone. “Era uma coisa tão relevante, até para a minha carreira, que eu não podia publicar uma noticia falsa e tive de ter a certeza, por isso, aconselhei-me com o advogado da empresa, vimos os prós e contras, se aquilo era violação de correspondência.” Para garantir a veracidade dos documentos, fez outra chamada. “A minha única intervenção foi falar com um jornalista do Público, que me garantiu que todos os documentos eram verdadeiros, porque o meu único medo era que fossem falsos”, diz. Além dos dois jornalistas, os e-mails tinham sido trocados entre os vários elementos da direção do Público.
O Observador tentou obter alguns esclarecimentos de Nuno Saraiva sobre este episódio, ele que foi o primeiro a assinar a peça de 18 de setembro do DN. O ex-jornalista recusou-se a falar sobre o assunto. “A única pessoa que, julgo, ainda hoje sabe [de onde veio a informação] é o primeiro signatário da notícia”, diz João Marcelino.
A primeira polémica daqueles dias foi a posição de corte assumida então por elementos do Palácio de Belém que mantinham uma relação de absoluta proximidade com o Presidente da República. Fernando Lima garante que agiu sempre com conhecimento (e sob orientação) da sua “hierarquia”, sendo que era diretamente a Cavaco Silva que o seu assessor para a comunicação social respondia.
Ao Público, numa entrevista concedida no ano passado, Cavaco Silva recusou que alguma vez tivesse considerado estar a ser vigiado. “Não. Nunca, nunca, nunca”, disse. “Sabe, eu na Presidência da República só despachava com duas pessoas, o chefe da Casa Civil e o chefe da Casa Militar. No meu tempo de PR ninguém tinha a mínima dúvida de quem é que mandava na Casa Civil, era o chefe da Casa Civil”, explicou, numa formulação que deixava subjacente a ideia de que qualquer que tivesse sido o alegado plano em Belém, o chefe de Estado desconhecia-o.
O caso mantém, no entanto, outras pontas soltas. Como a que o então provedor do leitor do Público, Joaquim Vieira, levantou num comentário na rede social Facebook: “Eu também gostava de saber” como os jornais tiveram acesso a emails internos do Público, “uma vez que esses emails eram uma troca de correspondência entre mim, como provedor do leitor do Público, e elementos da sua direção e da sua redação”.