Uma erupção do cume do vulcão Kilauea no Hawai, EUA, projetou uma grande nuvem de cinzas e fumo a mais de nove mil metros de altura, pouco menos do que a altura normalmente atingida por um avião a jato. Esta é a segunda erupção explosiva do Kilauea, embora ela estivesse prevista desde terça-feira, quando as autoridades norte-americanas emitiram um alerta vermelho porque “uma grande erupção vulcânica” estava “iminente ou a ocorrer”. Ela chegou esta quinta-feira às quatro da manhã locais, mas a situação pode ainda piorar: “A qualquer momento, a atividade pode voltar a se tornar mais explosiva, aumentando a intensidade da produção de cinzas e produzindo projetos balísticos perto da abertura”, avisa o Serviço Geológico dos Estados Unidos.

O Hawai está agora de olhos postos no céu à espera que as cinzas caiam no céu e cubram a região em redor do Halemaumau, a cratera vulcânica no interior da caldeira do Kilauea. Devido às condições de vento, as cinzas estão a ser levadas para o nordeste da ilha, onde a população está aconselhada a não deixar a casa: “As condições de condução podem ser perigosas, por isso, se estiver a conduzir, saia da estrada e espere até que a visibilidade melhore”, aconselha o Serviço Geológico, que descreve o evento como “enérgico, mas de curta duração”. As câmaras instaladas no local revelam “uma nuvem robusta de gás” a ser emitida pelo vulcão e algumas cinzas “a voarem para sudoeste”.

A atividade vulcânica continua em Pahoa, no Hawai (Photo by Mario Tama/Getty Images)

As erupções explosivas são raras no Kilauea: este vulcão costuma expelir lava em estado muito líquido porque o magma maioritariamente constituído por basalto — como é o caso deste vulcanismo em particular — tende a ser menos viscoso do que aquele que existe em vulcões mais explosivos, como os que existem na bacia do Pacífico. A lava havaiana consegue sair da cratera, percorrer quilómetros em meros minutos e depois acumular-se em autênticos lagos que cobrem a crosta por debaixo do oceano, dando-lhe uma nova vida. Isso continua a acontecer agora, mas há um novo perigo a enfrentar: o dos piroclastos, que podem ser ainda menos previsíveis.

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A história de um inferno

Este é o resultado de uma atividade atípica do Kilauea que começou a a 3 de maio. Desde a sexta-feira anterior que a população do Hawai esperava ouvir o rugido do Kilauea, um vulcão em constante erupção há 35 anos. Era uma da manhã de 30 de abril em Portugal Continental, duas da tarde por lá, quando o Serviço Geológico dos Estados Unidos reparou num “aumento acentuado na sismicidade e na deformação do solo” em Pu’u ‘Ō’ō, um cone vulcânico nas imediações do Kilauea. Poucos minutos depois, a câmara térmica instalada nos flancos do vulcão mostrou o primeiro dos dois colapsos da cratera — o segundo só viria a acontecer uma hora e meia mais tarde e durou quase 60 minutos. Algo de estranho se passava e o Observatório Vulcanológico de Hawai pressentia-o: naquela mesma noite, todos os cientistas da unidade foram chamados para se organizarem por turnos e manterem os olhos postos no Kilauea dia e noite em busca de sinais de perigo para população. Eles viriam a chegar na segunda-feira seguinte, 3 de maio. Desde então, o Kilauea já destruiu dezenas de casas.

O Havai ficou em suspenso depois dos colapsos da cratera: os relatórios arquivados pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos revelam que “a intrusão do magma a leste do sistema” vulcânico tinha “aumentado a sismicidade” na ilha logo umas horas depois do acontecimento de 30 de abril e das movimentações do magma que faz borbulhar o Kilauea há 35 anos sem parar. O pior dos cenários, no entanto, chegou à hora de almoço de 4 de maio no Havai — ainda era dia 3 em Portugal. Um terramoto com origem no flanco sul do vulcão Kilauea e com magnitude 6,9 de escala de Richter abalou toda a ilha e precipitou aquilo que os geólogos vinham a observar desde 30 de abril: o Kilauea tinha acordado. A lava expelida por ele começou a encaminhar-se como um rio para dentro da cidade, engolindo os carros, os campos e as casas que encontrava pelo caminho. E, por baixo dos pés dos havaianos, o chão começou a rachar-se.

Até ali, o Serviço Geológico dos Estados Unidos não tinha dado conta de mais do que três fissuras no solo, todas elas com menos de 10 centímetros de comprimento. A situação complicou-se rapidamente: até 17 de maio, data da mais recente atualização científica, 21 fissuras rasgavam o Havai, algumas das quais transformadas em autênticas janelas para o manto de onde escapava lava borbulhante a mais de 1.000 ºC. Algumas delas já têm mais de quatro quilómetros de comprimento e têm crescido quatro centímetros por dia.

O que se passa debaixo do Havai?

Primeiro, uma introdução à geologia. A superfície da Terra é feita de peças rochosas chamadas placas tectónicas: todas as placas encaixam umas nas outras, mas andam à deriva por cima de um oceano de rocha em estado plástico chamado magma. O magma mexe-se: os materiais mais frios tornam-se mais densos, por isso afundam; depois voltam a aquecer graças à proximidade ao núcleo do planeta e voltam a arrefecer, formando uma corrente de convecção — semelhante ao que acontece quando se aquece água numa panela. São essas correntes de convecção que motivam os movimentos das placas tectónicas: em alguns sítios elas roçam uma na outra (limites transformantes), noutros elas chocam umas contra as outras (limites convergentes) e em alguns elas afastam-se (limites divergentes). Quando elas chocam uma nas outras a superfície da Terra destrói-se, mas quando se afastam a superfície renova-se. É uma espécie de processo de reciclagem da superície terrestre.

Ora, alguns fenómenos são mais comuns em alguns sítios do que noutros: a maior parte dos vulcões do planeta Terra ficam nas regiões onde as placas tectónicas se afastam umas das outras porque é nessas que o magma tem oportunidade de subir até cá acima. Apesar de serem os vulcões mais comuns, são também os menos estudados e os menos observados porque costumam localizar-se debaixo de água: normalmente, este tipo de vulcões só é conhecido porque as erupções que provocam dão origem a sismos violentos. Os vulcões mais conhecidos são os que se formam quando uma placa tectónica continental e uma placa oceânica chocam uma contra a outra: se isso acontece, as placas oceânicas mergulham por debaixo das placas continentais por serem mais pesadas: é nessas zonas de subducção que o magma aproveita para subir e dar origem a um vulcão.

Mas nenhuma destas situações condiz com o que se passa no Havai: o arquipélago fica a 3.200 quilómetros do limite tectónico mais próximo porque fica no interior da placa do Pacífico. Acontece que há bolha de magma que subiu do manto e se encostou à crosta terrestre e que, graças às mesmas correntes de convecção que fazem mover as placas tectónicas, é constantemente alimentada de material rochoso em estado de fusão. Esse material é tão escaldante que escava a crosta terrestre a partir de baixo, como um cigarro posto por baixo de uma folha de papel: abre-se então uma janela para o manto da Terra no meio do oceano de onde brota magma — que chegado à superfície se passa a chamar lava — que se vai acumulando até formar uma ilha vulcânica. Foi asim que nasceu o Havai e foi assim que nasceu também aquela que é verdadeiramente a maior montanha do planeta. Não, a maior montanha do mundo não é o Evereste: essa é só aquela cujo cume fica a maior altitude, 8.848 metros. A maior tem 10.203 metros e chama-se Mauna Kea: à semelhança do vulcão Kilauea, que está a tirar o sono aos havaianos, também ela tem como berço uma pluma magmática subterrânea a que os cientistas chamam hotspot.

Hawai, um caso de estudo

Há muito tempo que os havaianos aprenderam a conviver com a fúria do magma que borbulha debaixo dos seus pés: o Kilauea está constantemente ativo desde 3 de janeiro de 1983, quando várias fissuras começaram a brotar no solo, mas a história do hotsport havaiano já tem pelo menos 85 milhões de anos. A resposta para o que se passa debaixo do Hawai começou desde a ilha começou a ser habitada pelos polinésios, os primeiros colonizadores do território. Desde muito cedo que perceberam que quanto mais para noroeste andassem, mais antigas pareciam as terras: as ilhas mais a noroeste pareciam mais massacradas pelo mar e até a vegetação era diferente. Depressa se arranjou uma justificação que pudesse ser transmitida de geração em geração: era a lenda de Pelé.

Segundo essa lenda, Pelé era filha do espírito feminino de Haumea e descendia da Mãe Terra e do Pai Celeste, os deuses supremos da crença religiosa tradicional havaiana. Pelé vivia numa ilha chamada Kauai quando a irmã mais velha, Deusa do Mar, a acusou de ter seduzido o marido dela. Temendo pela vida, Pelé fugiu para o sudeste da ilha de Oahu, depois para Maui e a seguir para para o Havai, onde se escondeu para todo o sempre dentro da cratera Halemaumau — a que entrou em erupção esta noite, no cume de Kilauea: foi aqui que encontrou o refúgio perfeito, porque nem mesmo a Deusa do Mar consegue erguer ondas suficientemente grandes para alcançarem os 1.247 metros de altitude do vulcão. Por mais fantasiosa que esta justificação possa parecer, há mais de científico nela do que pode parecer: é mesmo verdade que as ilhas nas vizinhanças de Hawai tornam-se mais antigas quanto mais se andar para noroeste.

A lava irrompe pelo solo em diferentes partes da ilha havaiana. Uma das últimas erupções, ao início desta manhã de 17 de maio, atingiu quase 9 metros de altura (Photo by Mario Tama/Getty Images)

Ao longo dos 85 milhões de anos que a bolsa de magma vinda das profundezas da Terra se encostou à crosta terrestre, a placa do Pacífico onde o Hawai assenta mexeu-se: à medida que ela deslizou por cima do manto, o magma vindo da bolha deu origem a novas ilhas e alimentou os vulcões de onde elas nasceram. Depois, com o movimento da placa do Pacífico, o vulcão fica cada vez mais afastado da bolha e vão ficando cada vez menos ativo até morrer completamente — torna-se extinto. É por isso que atrás do Hawai há uma verdadeira fileira de ilhas-cadáver onde antigamente havia vulcões tão ativos como o Kilauea é agora. A essa fileira chamamos Cadeia de Montanhas Submarinas Hawai-Emperador: a ilha mais antiga, Kauai, tem 5.1 milhões de anos e a mais recente é o Hawai, que não terá mais do que 400 mil anos. Todas as outras foram tão fustigadas pela força do mar que se transformaram em areia.

A bolha de magma que alimenta o kilauea tem pelo menos 600 quilómetros de largura e com dois mil quilómetros de profundidade: lá dentro há magma que tem origem nas regiões mais superficiais do magma, que é normalmente mais fria, e magma que vem das regiões mais próximas ao núcleo, sendo por isso mais quente. Isso condiz com estudos mais recentes feitos à temperatura da bolha: esses estudos dizem que a câmara magmática, onde está armazenado o magma que é expelido pelo vulcão, fica a entre 90 e 100 quilómetros de profundidade, mesmo encosta às rochas do Período Cretáceo na litosfera oceânica. Aqui, a temperatura ascende até aos 1.500 ºC.

O fim do Kilauea

Não é apenas o movimento da placa tectónica que dita a morte dos vulcões do arquipélago do Hawai: embora esses vulcões andem até 10 centímetros por ano por causa da migração das placas, a bolha magmática por debaixo do Hawai também se mexe. E muito. Isso descobriu-se em 2003 quando uma equipa de cientistas decidiu estudar a origem da curva com 60º que existe na cordilheira daquele estado dos Estados Unidos — uma curva que o movimento da placa não poderia ter causado. Acontece então que a “vela” por debaixo da Placa do Pacífico andava cerca de sete centímetros por ano, mas que a partir de certa altura passou a mover-se para os nove centímetros anuais, provocando então essa curva. Todos estes movimentos vão simbolizar a morte do vulcão Kilauea um dia, porque a chaminé do monte ficará demasiado afastada da bolha para ser alimentada. A partir daí, o Hawai vai andar cada vez mais para noroeste até desaparecer debaixo do mar.

Isso pode acontecer mais depressa do que se prevê porque os vulcões têm permanecido cada vez menos tempo no ativo: o vulcão mais antigo do Havai chama-se Kohala e embora tenha um milhão de anos nunca mais acordou desde há 120 mil anos; enquanto um dos vulcões mais antigos, Detroit Seamount, esteve ativo durante quase 18 milhões de anos. Se as condições se mantiverem as mesmas, e se a placa do Pacífico continuar a mergulhar debaixo da Euroasiática, daqui a poucos milhões de anos toda a cadeia que culmina no Hawai pode transformar-se em magma debaixo dos nossos pés.

Por enquanto, o Kilauea tem dados sinais muito fortes de vida: as taxas de fluxo de lava estão a aumentar exponencialmente e são agora as mais altas desde há pelo menos seis milhões de anos. E embora quase não tenha expelido lava nos primeiros tempos de vida do hotspot, a verdade é que desde há 85 milhões de anos esta bolha de magma já cuspiu lava suficiente para cobrir Portugal de lés a lés com uma camada de rocha em estado líquido com oito quilómetros de espessura. Para trás fica um rasto de pelo menos 129 vulcões, 123 dos quais estão agora extintos. Dos seis sobreviventes, dois estão adormecidos e não têm dado sinais de quererem acordar. Em contrapartida, o Kilauea vai acontinuar a ameaçar a população de 1.4 milhões de pessoas que vive no Havai.