Dois mil e quinze foi bera mas chegou ao fim. Em ebulição, o Brasil despedia-se do ano com prisões, um impeachment e relatos anónimos de assédio pelas redes sociais, e no meio do turbilhão, uma voz esquecida, sorrateira, de resistência, a rasgar pelo frenesim televisivo, anestesia de 200 milhões de habitantes. “Cara, já ouviu esse disco da Elza Soares com a galera de São Paulo?”, sussurravam alguns desbravadores das soundclouds, a apalpar terreno no início de 2016. “A mulher do Garrincha? Ainda canta? Ainda está viva?”, respondiam incrédulos, antes dos concertos apoteóticos que varreram o país, de uma abrupta comunhão de súbditos desta rainha de 80 anos — gays, negros, brancos, jovens — em vénias ao trono da mulher do fim do mundo, que deixava na avenida a pele preta, a sua voz, a opinião, a cantar, até ao fim.
Dois mil e dezoito também está bera e longe de chegar ao fim. Elza Soares não saiu do pedestal durante estes três anos que separam A Mulher do Fim do Mundo e Deus É Mulher, tornou-se um dos principais difusores culturais da negritude, do orgulho LGBT e sobretudo, das mulheres brasileiras, frustradas politicamente e socialmente. O Brasil não acompanhou o sucesso da sambista, segue a sambar pela avenida abaixo, e estas canções são cada vez mais indissociáveis da desgraça alheia, o mesmo feijão da panela, sempre a ferver.
Deus É Mulher é combativo, político, militante, punk, é o regresso do samba sujo dos cerebrais paulistas, e da cantora que em criança disse, numa amargura mordaz, ser do “planeta fome”, e sentir na pele como o negro é “a carne mais barata do mercado”. Não é possível ouvir Elza sem primeiro ouvir o Brasil. Estas canções não existem sem contexto, o que é historicamente extraordinário, e ao mesmo tempo, musicalmente frustrante.
Carlos Drummond de Andrade, o índio poeta, assegurava que Deus é triste, e Gal Costa, índia de pele morena, que Deus é o amor. Elza Soares, índia guerreira, termina o novo álbum a defender a tese que “Deus Há de Ser” mulher, ou mesmo que, Deus É Mulher, um pedido e uma exigência, por um mundo melhor, mais efeminado, depois de já ter alertado para a violência doméstica, encontrado o celular e ligado para o 180 em “Maria da Vila Matilde”. Douglas Germano, o mesmo compositor desse hino feminista, inaugura o álbum e apresenta a trindade temática da deusa Elza.
“Mil nações moldaram minha cara
Minha voz, uso para dizer o que se cala
O meu país é meu lugar de fala”
Canta assim em “O que se cala”, repartindo a mensagem e corpo de Elza em três: As mil nações que a moldaram, da pobreza à vida violenta com Garrincha; a voz, grito das minorias; e o país, Brasil destroçado de 2018.
A frustração em ouvir este disco é esta contextualização obrigatória, entender que a música é o grande refém nestas deambulações político-sociais, não dar tempo para as notas dançarem no nosso ouvido, entre cada alfinetada ao Governador de São Paulo, sempre com o sintetizador esticado ao máximo, a besuntar de sujeira a voz já arranhada de Elza. Aqui a receita é a mesma do álbum anterior, um pé no samba, do terreiro ao morro, e outro nas avenidas íngremes de São Paulo, irrequietas e cinzentas.
Guilherme Kastrup e os colegas, desde Kiko Dinucci a Romulo Fróes, entraram no estúdio com uma missão impossível, superar um álbum que se tornou quase projeto de lei de como tratar a nova música brasileira. O resultado é cada vez mais próximo de Metá Metá, uma das bandas de Kiko Dinucci, a distorcer o scat, o gargarejar carioca da cantora. A voz raspa no microfone, ri diabolicamente na “Hienas na TV” de Dinucci, compositor também de “Exu nas escolas”, os versos mais políticos de todo o disco.
“Exu nas escolas
Exu no recreio
Não é show da Xuxa
Exu brasileiro”
A ironia de Elza ao lado do rapper Edgar, a exaltar o mesmo orixá que guia hoje a carreira de outro rapper proeminente, o Baco Exu do Blues, ponto de partida para se posicionar contra a Escola sem Partido, o polémico projeto que procura diminuir a influência dos professores afectos a partidos de esquerda. Para o bem e para o mal, contexto é tudo.
São dez canções nervosas e “Língua Solta”, um quase samba triste de Nelson Cavaquinho, é o descanso necessário para a esquizofrenia de temas que vão desde um frenético frevo (“Eu Quero Comer Você”) ao balanço engatilhado da guitarra de Rodrigo Campos em “Clareza”. Não faltam versos de alento para a comunidade LGBT, que acompanha Elza desde o álbum anterior, em “Um Olho Aberto” (“Ora, cara, não me venha com esse papo sobre a natureza/ Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia”). No “Banho” troca a espuma romântica pelos fluídos sensuais, um swing de sintetizador encomendado a Tulipa Ruiz e com batucada de bloco feminino Ilú Oba De Min, um preliminar possível “Pra Fuder”, sedutor e corrosivo, embaixo doce, em cima salgado.
Se para Milton Nascimento e companhia, “Credo” é sinónimo de uma crença absoluta, quase infantil, na juventude, nas mãos de Elza o “Credo” é uma autodeterminação na própria fé, de acreditar que “não preciso que ninguém me ensine”, como “essa gente que olha pro céu e tropeça no chão”, e claro, debitar estas considerações acompanhada por um tremendo riff punk.
Dentro de cada um está uma mulher e a mulher somos nós, garante em “Dentro de Cada Um”. Dentro de Elza Soares está uma história de sobrevivência, a narrativa de um país presente, que não se consegue desprender das canções, que nos ataca de frente, cada vez mais feroz, empoderada, a dar voz à “mocinha suada que vendeu o corpo pra ter outra chance” e a qualquer pessoa que “já levou porrada na vida”, que vejamos, pode mesmo ser cada um, e aqui dentro continua uma coisa que não consegue ficar indiferente a Elza Soares, uma coisa zangada, atiçada, viva. Se quiserem, podemos chamar-lhe de mulher.