Quando André de Quiroga ouviu o nome de Anthony Bourdain pela primeira vez, nunca pensou que uns anos mais tarde viria a estar sentado à mesa com ele numa taberna basca no centro de Madrid. “Em 2003 estava em Barcelona a organizar um festival de gastronomia com o Miguel Castro Silva”, começa por contar o gastrónomo, bibliófilo, colecionador de arte contemporânea, curador de arte e Presidente da Academia de Gastronomia do Caminho Português de Santiago de Compostela. Num dado momento, Quiroga vê-se obrigado a visitar “uma loja da Fnac” e é lá que se “cruza” com o cozinheiro pela primeira vez. “Na prateleira dos livros vi uma coisa chamada ‘Confesiones de un Chef’, que era assinada por um tal Anthony Bourdain”, relatou ao Observador via telefone. O nome não lhe dizia absolutamente nada, “não fazia ideia de quem era”, mas o livro despertou-lhe interesse. “Comprei-o, era a edição espanhola, ainda a tenho aqui em casa algures.”

“Achei piada àquilo”, explica André. O tempo foi passando e entretanto o fenómeno ‘Tony’ explodiu pelo mundo todo. Mesmo assim, foram precisos sete anos para Quiroga e Bourdain se “re-encontrarem” — desta vez ao vivo e a cores.

André de Quiroga (à dir.) e Bourdain (esq.), no dia em que jantaram em Madrid

Grande parte do mundo já terá visto pelo menos uns minutos dos programas do chef norte-americano. Neles, Bourdain atravessava o mundo inteiro a saltitar de mesa em mesa, comendo algumas das melhores iguarias do planeta, sempre acompanhado de pessoas que lhe davam a conhecer não só aquilo que iriam levar à boca como tudo o resto que o circundava. Esses trechos de refeições televisionados parecem sempre demasiado curtos para quem os vê e não consegue não pensar “quem me dera estar ali”, mas a verdade é que há muito mais que fica por mostrar. Afinal, o que é que nós, telespectadores, perdíamos? Quiroga teve essa dúvida durante muito tempo, mas bastou uma chamada inusitada para isso mudar.

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“Fui colaborador e amigo de um personagem chamado Gaspar Rey, um catalão que fez de tudo, incluindo muitas coisas ligadas à gastronomia, como ser crítico, por exemplo”, começa por explicar. André e Gaspar (que também era diretor de uma revista conceituada chamada Cocina Futuro) organizaram uma série de eventos em conjunto e isso foi criando laços de amizade. Uns bons anos depois de 2003, Gaspar liga ao seu compañero português: “Assim do nada ele pergunta-me se eu queria entrar num programa de televisão do Anthony Bourdain”.

[Em ambiente de diversão, com a namorada e o diretor que admirava. Veja o último vídeo de Bourdain]

Quiroga diz que ficou completamente encavacado, sem saber bem o que dizer, mas acabou por aceitar: “Ele insistiu, disse que lhe tinha falado de mim e que ele queria conhecer-me. Eu lá aceitei e fui assim de um dia para o outro [de recordar que André estava em Lisboa quando recebeu a chamada e o jantar seria na capital espanhola].

Assim foi. Arranjou bilhetes de avião e seguiu para o txoko (uma confraria gastronómica basca ou dirigida por bascos) onde tudo ia acontecer. “Lembro-me que levei uma garrafa magnum da Herdade do Esporão, uma edição especial”, começa por dizer antes de destacar, entre risos, que Bourdain chegou a beber e elogiar aquele bocadinho de Portugal que lhe chegou em estado líquido.

O voo do português chegou a Madrid “à tarde” e isso fez com que fosse dos últimos a chegar ao palco do jantar. Quando lá entrou, a equipa de seis ou sete pessoa já tinha garantido que “tudo o que tivesse a ver com a produção e filmagens já estava montado”.

André recorda que havia muita gente, todos convidados a juntarem-se à refeição (e à conversa). Uns cortavam presunto, outros iam abrindo garrafas de vinho e servindo com generosidade, tudo num registo muito informal, “não havia cá empregados de luvas brancas”. Quando a comida ficou pronta para servir, todos seguiram para a mesa grande, onde passaram “uma série de horas seguidas”, “nem deu para contabilizar”. Uns atrás dos outros, vários pratos típicos iam sendo pousados na mesa, toda a gente servia-se do que queria e a conversa fluía. A tradição destes txokos dita que todos os domingos os homens saltam para a cozinha e ficam encarregados da confeção de tudo o que se quiser comer. O episódio relatado aconteceu num destes dias da semana e houve um pormenor que Quiroga não vai esquecer — e até comentou com Bourdain: “O tipo que estava a descascar e cortar camarões era um neurocirurgião!”

Independentemente do contexto de cada uma das pessoas que lá estava (críticos gastronómicos, cozinheiros, o correspondente do The New York Times em Madrid, …) não havia barreiras ou interdições. Toda a gente falava à vontade, não havia interrupções para regravar cenas, tudo era natural, espontâneo e sem guião. “Sentia-se que estava mesmo a haver uma troca de experiências, de ideias. Marcou-me muito a capacidade que o Bourdain tinha de falar de assuntos profundos mas de uma forma muito leve.”

Num dado momento, recorda André de Quiroga, surgiu a oportunidade de falar um pouco com Bourdain: “Trocámos umas bolas sobre Portugal, ele disse-me que já tinha estado nos Açores e que conhecia o Porto. Explicou que o primeiro contacto que teve com a gastronomia portuguesa foi através dos emigrantes portugueses ali da zona do Maine, New England… No geral, tinha uma noção interessante da oferta de produtos que havia cá, mas não estava nada a par do panorama mais de restaurantes ou de chefs“, explica. Entre comida, vinho, uma atuação de um grupo de flamengo — “o vocalista era o Yé Yé de Cadiz” — e muita conversa, a ideia que André de Quiroga retirou de toda esta experiência foi a de que não existia um ‘Bourdain da televisão’ e outro ‘da vida real’. Ele era como era, quer se gostasse ou não, e essa atitude fazia com que qualquer partilha de comida como esta fosse “literalmente um jantar entre amigos que conversam e gostam de comer”.