Antes do concerto, o aviso estava dado: ver Nick Cave e os Bad Seeds em 2018 é um privilégio histórico. Quem encheu o recinto do Parque da Cidade do Porto este sábado e não arredou pé durante a quase hora e meia que durou o concerto sabia-o bem. Mas não foi Nick Cave e a sua banda (tão bem liderada por Warren Ellis) que tiveram qualquer privilégio em tocar para um público que resistiu à chuva, fomos nós, todos os lá que estivemos, que tivemos o privilégio único de assistir a um dos melhores concertos dos últimos anos em Portugal.

No concerto mais aguardado da sétima edição do festival, Nick Cave dançou e lutou com a morte, cantou sobre o diabo e outros demónios, sobre os vícios da vida e da carne. Ora pastor pop de uma igreja que cantou com ele “Into My Arms” a plenos pulmões, ora líder aclamado de um culto rock and roll que tem poucos membros como ele, subversivos e provocadores, ferozes e desafiantes.

Se o rock and roll em alguns casos se aburguesou e noutros se apequenou — habituando-se ao estatuto de alternativo, não querendo agitar multidões com talento e verdade –, tem um valor incalculável haver quem resista. Cave é o homem que transforma o mal-estar em raiva e não em enfado, os impulsos em ações e não em pensamentos reprimidos. O homem que, como fez esta noite, atira folhas ao ar, simula pontapés, olha quem está no público nos olhos, salta e dança como se estivesse num transe só dele, parece estar sempre à beira de virar o mundo e o concerto ao contrário porque se não for no limite, não vale a pena.

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O concerto começou em grande nível, com “Jesus Alone” e “Magneto”, vindas do último disco de Nick Cave (Skeleton Tree, de 2016), a prometerem um concerto de luto inspirado no último trabalho. Não seria bem assim, não se ouviriam por exemplo alguns dos novos hinos sobre o “grande trauma” de 2015 (como o australiano lhe chegou a chamar no documentário “One More Time With Feeling”), a morte do filho Arthur, de 15 anos. Hinos como “I Need You”.

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Do primeiro par de canções em diante, os clássicos imperaram, e são tantos desde que Cave deixou as garagens pós-punk para começar a revolver o mundo com as suas canções. “A canção roda desde 1984”, como o próprio canta em “Girl in Amber”, referindo-se ao ano de lançamento do seu primeiro álbum com os Bad Seeds. Claro que a carga emocional é outra desde que Nick Cave passou por essa tragédia, claro que há palavras antigas que são canibalizadas por tudo isto. Como as de “The Weeping Song”, canção gravada há quase 30 anos: “O father, tell me, are you weeping? / Your face seems wet to touch / O then I’m so sorry, father / I never thought I hurt you so much”. Como é que Nick Cave consegue cantar isto, como é que consegue continuar a fazer discos que são obras-primas, concertos que parecem sempre melhores do que os anteriores? A resposta só ele a conhece, o melhor é aproveitar.

“Do You Love Me?”, a terceira canção do alinhamento, colocou o público a cantar o refrão em uníssono, Nick Cave a fazer a mesma pergunta a quem estava na primeira fila, olhos nos olhos, e a juntar-se a Warren Ellis no órgão para atacarem o instrumento com a urgência de quem procura na música a transcendência (e os anjos e demónios, a religião e a morte, são temas profundamente presentes na obra de Cave). Seguiu-se o desvario (em bom) elétrico da velhinha “From Her To Eternity”, do primeiro disco de Nick Cave com os Bad Seeds, já lá vão 34 anos, e a tensão carnal de “Loverman”, boa altura para Nick Cave ajoelhar-se, saltar, simular mais um pontapé, exteriorizar toda a tensão. Continuou-se com Let Love In, o disco de 1994, e de “Loverman” Nick Cave passou para “Red Right Hand”, com o público a cantar as palavras do título, Cave a fazer um gesto de aproximação com as mãos dizendo “come, come, come”. Dançar e lutar com a morte, lá está.

Nick Cave este sábado no NOS Primavera Sound. Fotografia: João Porfírio / Observador

O concerto ia a meio quando Nick Cave deixou por um momento os Bad Seeds para “tocar sozinho ao piano.” Apelou ao público para cantar consigo, disse-se feliz pela chuva, ainda queria mais porque o tempo só tornava a canção mais bonita e esta era “linda”. “Ó, são todas”, ouvimos mesmo ao lado. Cara limpa com uma toalha (pudera, com tanta correria), seguiram-se as primeiras notas de “Into My Arms”. É claro que não falhou nenhuma, nem no piano nem na voz, bem certinha. Estava tudo certo.

A pausa na eletricidade e a canção sozinho ao piano fez uma boa transição para “Girl In Amber” e para esses dilacerantes versos (mais ainda neste contexto) “And if you want to bleed, just bleed”. E ouvir-se-ia ainda “Tupelo” antes de mais um hino, a canção “Jubilee Street”, e a sua ferocidade elétrica exponenciada a níveis apoteóticos no Primavera Sound do Porto. Seguiram-se “The Weeping Song”, cantada já numa plataforma à frente do palco e no meio do público, e novo hino na ponta da língua de alguns milhares, “Stagger Lee”.

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O concerto, de alinhamento quase irrepreensível (queríamos “Henry Lee”, “The Ship Song” e mais canções novas, em particular a fabulosa “Rings of Saturn”, mas isso somos nós que ficámos atónitos a ouvir Skeleton Tree), não terminaria sem intensificar-se a comunhão, com Nick Cave a fazer algo que se tornou habitual nos seus concertos: chamar duas ou três dezenas de fãs ao palco e pô-los a cantar consigo. “Push the Sky Away”, a canção escolhida para o momento, habitualmente e também este sábado no Porto, fecharia o espetáculo com chave de ouro, lágrimas e abraços.

Na sua conta pessoal de Facebook, o músico português Benjamim escrevia esta madrugada que Nick Cave “foi o termo de comparação que se impunha, reduzindo os karaokes que o antecederam à sua insignificância”. A caracterização poderá ser excessiva, mas manifestamente exageradas são também as certidões de óbito que são continuamente passadas ao rock, esse estilo musical tão “antiquado” que afinal ainda move multidões e “só” precisa de nervo, talento e autenticidade para ser o que mais nenhum consegue: consensual e inter-geracional. Na caixa de comentários desse desabafo, um outro músico, com muitos concertos dados e seguramente muitos concertos vistos, dizia que este foi o “melhor e mais emotivo” concerto que já viu. “E não estou a exagerar…” Só ficou uma dúvida: como é que se prossegue a vida banal e quotidiana quando há quem a cante e toque assim?