James Murphy era um pacato produtor que se lembrou de lançar o seu próprio disco ia já trintão. Deste pecado original, veio toda a maldição posterior: se aceitasse ser uma estrela rock, nunca mais poderia levar a vida de um homem normal; se voltasse a tentar ser um homem normal, como viver sem o nervo do rock? Alguém acredita que ele, volta e meia, não saltava para cima da mesa da sala e gritava: “Get your payments from the naaatiooooonnnnnn”? A usar o pimenteiro como microfone? E que, depois, tinha de se ir explicar às reuniões de condomínio?

De “Losing My Edge”, single de 2002, a três longa-duração perfeitos – LCD Soundsystem, Sound of Silver e This is Happening –, o cidadão de New Jersey fez a banda sonora da primeira década do milénio. Reconciliou rockers e electrónica, pop e punk, e ainda pôs cínicos amargos a curtirem como reis das pistas de dança, ao som de épicos irónicos, ainda e sempre brutalmente honestos. Até que, em 2011, os LCD Soundsystem se despediram em casa, no Madison Square Garden, com “The Long Goodbye”, espectáculo registado no documentário “Shut up and Play the Hits”. Murphy tornara-se uma estrela mundial quando já tinha passado da idade do deslumbre e declarava, então, uma frase provavelmente ininteligível para uma certa geração: qualquer coisa como “o sucesso é porreiro, mas há mais coisas na vida”.

Nunca se disse, porém, que o adeus era para sempre. Talvez os LCD precisassem apenas de uns tempos de sofá e pijama, estar com a família, passear o cão, ir comprar o jornal e beber umas cervejas em lata no alpendre. Fizeram o que nenhuma celebridade, nascida na idade com que as celebridades costumam nascer, alguma vez ousou: viraram costas sem medo de perder o “momentum”, sem medo de serem esquecidos, num mundo que confunde, demasiadas vezes, reconhecimento e realização. E assim, cinco anos e algumas reuniões de condomínio mais tarde, regressavam aos palcos (Portugal recebeu-os no Verão de 2016, em Paredes de Coura) para, em 2017, voltarem aos álbuns: American Dream, tão bom, tão irónico e tão épico como dantes, como se o pudessem fazer uma e outra e outra vez, sempre que quisessem.

O concerto de terça-feira, no Coliseu, foi a primeira das três noites com que Murphy e o seu gangue encerram uma digressão que começou em São Francisco, em Novembro. E como foi? O costume. Bingo, cinco estrelas, 20 valores, perfect 10, póquer de ases, 13 no totobola, satisfaz completamente. Até parece fácil, mas requer muito talento e muito cabelo branco. Aquele senhor de meia-idade, 48 anos, que não tem idade para ser estrela rock, que não parece uma estrela rock, que não se comporta como uma estrela rock, partiu tudo outra vez. E hoje e amanhã, dizemos nós e em permitindo as cruzes, vai ser exactamente igual: muito, muito bom.

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Da declaração de princípios de abertura, “You Wanted a Hit” (“but that’s not what we do”) ao clamor de “How Do You Sleep”, houve, na verdade, muitos hits, diplomaticamente distribuídos entre álbuns: “Tribulations”, “I Can Change”, “Call the Police”, “Yr City’s a Sucker”, “Daft Punk is Playing in My House”, “Movement”, “Someone Great”, “Tonite” e “Home”.

Antes do encore, James Murphy explica que vão sair, mas que já somos todos crescidos, já fomos todos a muitos concertos, sabemos que eles vão voltar, mas que eles já são pessoas de idade e têm  mesmo de ir à casa de banho e já vêm para mais umas canções.

E assim foi: “Oh Baby”, “Dance Yrself Clean” e o épico-em-braços “All My Friends”. Pelo meio, Murphy contou que é em Lisboa que está o maior número de seguidores dos LCD por essa world wide web afora, e como isto os continua a intrigar. Os concertos aqui são sempre fantásticos, diz ele, mas o que é que explica isto? Para concluir, depois: “As nossas canções são tristes. Quer dizer, são canções de festa, mas são tristes. Talvez seja isso. Talvez fosse preciso uma cidade como Lisboa para entender essa tristeza e tornar-se a nossa segunda casa”. (citamos de memória. É possível que isto esteja ligeiramente mais épico do que o que Murphy disse. Ou menos épico do que o que Murphy disse.)

No fim destas três noites, os LCD Soundsystem vão parar outra vez? Ou parar de vez? E, de qualquer maneira, isto não está tudo para acabar? Durante o concerto, uma mensagem escrita traz-nos a notícia de que os Estados Unidos da América se retiraram do Conselho de Direitos Humanos da ONU. E é assim que, depois de tantos temas tão bons, saímos a cantarolar mentalmente um que Murphy nem tocou:

We are North American scum
We’re from North America
We are North American scum