Talvez fosse por ser segunda-feira. Ou de ainda não termos digerido a eliminação do Mundial. Talvez apenas os crónicos problemas de som da Altice Arena (no primeiro balcão, pelo menos, é preciso dizer que estava óptimo) ou tudo isso junto. O público influencia enormemente um espectáculo e, como tal, contamo-lo entre os critérios muitíssimo subjectivos e discutíveis que usamos para atribuir uma nota a um concerto. E a verdade é que, a noite passada, a única coisa a separar as quatro das cinco estrelas, isto é, um óptimo concerto de uma noite verdadeiramente inesquecível, não foram os artistas; foi o público.
Nesta profissão, como certamente em muitas outras, há muita coisa que se faz por gosto e outra tanta por obrigação. Ver Ozzy Osbourne em Julho de 2018, ele a meses de completar 70 anos, nós com idade para sermos apenas filhos dele (e não netos, portanto), não era programa a que nos dedicássemos por vontade própria. E, no entanto, caro leitor, que dizer? Uma lenda é uma lenda é uma lenda. Aliás, duas. Ozzy Osbourne e Zakk Wylde. Podia ter sido só uma segunda-feira banal; não foi. Foi o dia em que vimos Ozzy e Zakk Wylde ao vivo. E percebemos que isso nunca mais se esquece.
O espectro é amplo. Se se foi um rapaz a crescer algures nas décadas de 70, 80 ou 90, a probabilidade de ter tido um poster de Ozzy Osbourne na parede é, para dizer o mínimo, considerável. Nos Black Sabbath e depois a solo, o homem inventou o Heavy Metal. E houve ali uma altura – para uns durou um trimestre da escola, para outros ainda não acabou – em que todos fomos metaleiros. Todos deixámos ou tentámos deixar crescer o cabelo, todos aprendemos ou tentámos aprender guitarra, todos andámos a fazer headbanging nuns concertos de garagem ou na discoteca, todos encontrámos ali a crua e quantas vezes indecisa expressão das transformações por que estávamos a passar. Depois, lá está, tudo isso passou. Foram-se os posters, cortou-se o cabelo, passou-se a outra coisa. E o metal deixou o mainstream e ficou fenómeno de nicho, apenas com os fiéis verdadeiros, até ao fim.
O que descobrimos em Julho de 2018, com efeito, é que o metal não morreu; apenas perdeu bastante cabelo. Pela Altice Arena, havia gente de todas as idades – incluindo muitos grupos de rapazes que… Não é que Ozzy já fosse velho quando eles nasceram; era Ozzy já ter morrido e ressuscitado mais do que uma vez. Mas abundavam os trintões, os quarentões e os cinquentões. Quando os focos e lasers rasavam a plateia, já não se via a farta silhueta das cabeleiras de outrora; antes o brilho reflectido em múltiplos e lustrosos couros cabeludos nus. A atitude acompanhava em conformidade: pessoal sereno e bem posto, de cerveja numa mão e um filho pela outra, na nobre missão da educação musical da geração seguinte (a propósito: não resistimos a uma polaroide de um momento. Minutos antes da entrada de Ozzy, dois irmãos de 6, 7 anos, quase se pegavam à chapada. A mãe, em sobressalto ligeiro, lá decide distraí-los, pegando-lhes nas mãos e cantarolando, em tom infantil, o tema que passava nos altifalantes: “Olha a música, olha a música… ‘I’m on the highway to hell / Highway to hell’…”)
A sala não tinha esgotado, mas estava muitíssimo bem composta – e os bilhetes não eram baratos: dos 42 aos 89 euros. Todos queriam estar ali, para o adeus ao pai do metal – as T-shirts que 99% tinham decidido carregar, pretas e não necessariamente de Ozzy ou Black Sabbath, mas de qualquer banda metal possível, falavam de forma mais eloquente dessa genealogia do que qualquer teoria musical. Todavia, faltava-lhes a gana de outrora para devolver o que Ozzy, Zakk e companhia lhes davam a partir do palco.
(Certo, eu percebo. Não consumimos as drogas que Ozzy consumiu. Mesmo considerando que somos uns 15 mil e ele apenas um. Mas, ao mesmo tempo, é exactamente isso: é que nem sequer consumimos as drogas que ele consumiu!)
Ozzy Osbourne é um homem que viu tudo. Mordeu um vampiro e apanhou raiva. Arrancou a cabeça dum pombo à dentada. Viu morrer o melhor amigo na queda de um avião que quase lhe caiu literalmente em cima. Foi processado por mães que o culpavam pelo suicídio dos filhos por causa de uma canção em que, na verdade, chorava a morte de outro amigo. Tentou várias vezes deixar as múltiplas dependências e várias vezes falhou (daí esta ser a “No More Tours 2” – houve uma primeira já lá vão vinte e muitos anos). E, no entanto, ei-lo aqui agora, diante de nós, a desafiar tudo o que aprendemos sobre estilos de vida, a dar um concertaço para gerações de devotos, enquanto pensamos no nosso pai, pacato e regrado, um ano mais novo, em casa a lidar com os seus assuntos de saúde (“What doesn’t kill you”, certo?, “makes you stronger”).
Esta é a derradeira digressão de Ozzy Osbourne. Diz que vai continuar a compor e a actuar, mas que chega de grandes digressões e que precisa de dedicar mais tempo à família (É. Sabes o que eles dizem, Ozzy. Nunca é tarde). Começou no México, no início do ano, vai prolongar-se até 2020 e é o épico adeus de um deus do rock. O palco – deveríamos dizer: altar? – dominado por um cruz colossal não engana: há aqui qualquer coisa de religioso, de presunçoso e de batido, mas que muito poucos aguentariam e que, no caso de Ozzy, continua a funcionar.
Depois, segue-se um desfile de êxitos, curtos no número, longos na duração, só a selecção imaculada, infalível, dos melhores momentos de uma carreira de meio século. “Bark at the Moon” a abrir (curiosamente e no nosso caso, a primeira canção de Ozzy que ouvimos na vida), seguida de “Mr. Crowley” (que dimensão épica adquire ao vivo) e de “I Don’t Know”. À quarta canção, Ozzy vai pela primeira vez aos Black Sabbath buscar “Fairies Wear Boots”, para seguir, depois, para novo momento arrepiante “Suicide Solution”, com Zakk Wylde (está igual. Não nos perguntem o que é que esta gente põe no cabelo) a lembrar-nos que houve um tempo em que um homem com uma guitarra eléctrica parecia mais poderoso do que um exército). “No More Tears” e “Road to Nowhere” vão buscar os actos de contrição da carreira, antes de voltarmos ao repertório dos Sabbath para o tremendo “War Pigs”.
“I Don’t Want to Change the World”, “Shot in the Dark” e “Crazy Train” completam, em crescendo, uma cerimónia que Ozzy não deixa arrefecer. Depois de apelar insistentemente às palmas do público ao longo da noite, é ele mesmo quem garante que ninguém se esquece de pedir o encore, orquestrando o chamamento: “One more song, one more song”. Segundos depois, está de regresso para “Mama, I’m Coming Home” (quem não se arrepiou tem um hamster e uma roda no lugar do coração) e terminar voltando aos Sabbath com “Paranoid” e a sala finalmente em polvorosa. Antes de tudo isto, houve um bom quarto de hora em que Tommy Clufetos fez um solo de bateria que enfeitiçaria serpentes no deserto e Zakk Wylde percorreu quatro temas num só solo de guitarra, feito em grande parte com as mãos atrás das costas e passeando-se pela frente do público, e que nos lembrou que, sim, podem dizer o que quiserem, que tudo isto está datado, mas vimos aquilo, lembrámo-nos de alguma rapaziada que hoje se ouve dizer, de pen na mão, que vai “tocar” e começámos a rir. Mas depois tivemos pena.
À saída, um outro grande tema, não tocado, mas que passava na aparelhagem da Altice Arena na versão cantada com a filha, Kelly, lembrava: “We’re going through changes”. Tantas, Mr. Ozzy. Voltam de repente à memória esses posters na parede, essas primeiras aulas de guitarra, pátios da escola, fúrias e paixões, a dita crueza incerta das transformações que não sabíamos aonde iriam levar. Cada um, ao escolher o que seria na vida, escolheu não ser todas as outras coisas que poderia ter sido. E também esses fantasmas são parte de nós. Esses contornos vazios. Mas, de algum modo, parece que chegamos sempre exactamente aonde temos de chegar.
Soube bem o reencontro. Que injustiça seria negá-lo. Mais cabelo, menos cabelo, ficámos todos bem.