O Estado português enviou coimas, nos últimos dias, para dezenas de milhares de contribuintes, castigando-os por não se terem, ainda, inscrito no serviço ViaCTT (uma caixa postal eletrónica, concessionada aos CTT, para o envio de notificações com valor legal). Mas o mesmo Estado português já aprovou, há um ano e meio, uma proposta de lei que viria a ser promulgada pelo Presidente da República no verão passado para a criação da chamada “morada única digital“, que permitiria certificar qualquer endereço de e-mail — qualquer gmail ou hotmail, por exemplo — junto da Administração Pública e, no fundo, acabar com a obrigatoriedade de registo no ViaCTT. O problema é que esse serviço, que se dizia que estaria pronto na segunda metade do ano passado, ainda não está operacional. Já fracassaram dois concursos públicos para a criação do serviço e não há estimativas sobre quando poderá estar a funcionar.

A reação do comum contribuinte será, no mínimo, de confusão — ou, possivelmente, de estupefação. Ao receber uma multa por não ter havido inscrição num serviço legalmente obrigatório para alguns contribuintes (o ViaCTT), uma visita ao site do Ministério da Presidência e da Modernização Administrativa revela que existe um serviço de notificações eletrónicas que diz, explicitamente, que a inscrição no ViaCTT não é obrigatória. A “morada única digital” cria uma alternativa que permite que os contribuintes possam usar “qualquer fornecedor de correio eletrónico” — ficando, assim, com a opção de “manter o ViaCTT ou aderir a este novo sistema“.

Mas este “novo sistema” ainda não existe, apesar de ter sido aprovada no Parlamento a proposta de lei para a sua criação — em janeiro de 2017. Em agosto, depois de aprovação por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, surgiu em Diário da República. Esta criação da morada única digital e do serviço único de notificações eletrónicas vinha “possibilitar a cidadãos e empresas usarem um único endereço de e-mail para receberem comunicações e notificações dos vários serviços do Estado”. Segundo notícias que saíram na imprensa, na altura, a previsão era que, até ao final do ano de 2017, o novo sistema informático estaria a funcionar.

O prazo não foi cumprido, como confirma esclarecimento enviado pelo Ministério da Presidência e da Modernização Administrativa ao Observador. “O sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas está em fase de contratação e desenvolvimento, pelo que a adesão à morada única digital ainda não é possível”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando estiver operacional, todos os indivíduos e entidades (empresas, associações, etc.) vão poder indicar um endereço de e-mail onde passam a receber todas as notificações dos diferentes serviços da Administração Pública. Este endereço de e-mail é a sua morada única digital. Ninguém é obrigado a utilizar este serviço. Mas se aderir ao serviço, as notificações enviadas através dele passam a ter valor legal. Nos termos da lei fiscal e da segurança social as empresas e os empresários em nome individual (sujeitos passivos de IRC ou IVA) já são obrigados a receber notificações eletrónicas através do ViaCTT, sendo que nestes casos podem manter o ViaCTT ou aderir a este novo sistema, assim que o mesmo esteja operacional”.

Não existe, contudo, qualquer estimativa do Governo sobre quando este serviço estará disponível — acabando com a exclusividade do serviço ViaCTT.

Segundo apurou o Observador, foi lançado um primeiro concurso que não recebeu qualquer manifestação de interesse — por outras palavras, ficou deserto.

Foi, depois, lançado um segundo concurso que já contou com várias propostas de interesse, de empresas nacionais e internacionais. Esse concurso, contudo, também não correu bem porque houve acusações de irregularidades por parte de alguns participantes do concurso, uns contra os outros. Por essa razão, também essa segunda contratação foi cancelada e, neste momento, não é certo sequer que venha a haver um terceiro concurso — apesar de a fonte oficial dizer que o processo “está em fase de contratação”.

Por Via(CTT) das dúvidas. Que serviço é este (quanto custou e quantos o usam)?

Morada Única Digital poderia retirar 10 milhões em receitas aos CTT – só no primeiro ano

Quando, nos últimos meses de 2016, se ficou a saber que o Estado iria passar a enviar notificações eletrónicas, prescindindo em muitos casos das cartas em papel, houve analistas que fizeram a conta ao impacto que isso teria para as contas dos CTT — que já era, desde 2014, uma empresa privada e cotada em bolsa.

Entre esses analistas, que acompanham a ação dos CTT, estavam os do Haitong, que calcularam que este novo sistema poderia subtrair 10 milhões de euros em receitas na empresa, só no primeiro ano.

Esse cálculo tinha por base o pressuposto que 25% dos cidadãos iriam aderir a este serviço, uma estimativa que se pode considerar conservadora, porque se estima que metade da população portuguesa usa regularmente a Internet e, desta forma, estaria a trabalhar com o servidor de e-mail a que estão habituados (e não a um outro sistema mais datado, como o ViaCTT). Ainda assim, com essa adesão de 25%, o impacto em 2017 seria 10 milhões. E em 2018 seria ainda pior: 20 milhões a menos, em faturação.

Se os CTT não subissem os preços dos seus outros serviços ou cortassem custos, dizia o Haitong, este novo sistema da Morada Única Digital poderia “afetar o EBITDA [resultados antes de juros, impostos, depreciações e amortizações] face às nossas estimativas em 20 milhões de euros, ou 13% do EBITDA” — este era, acreditavam os analistas, “o pior cenário”, citava, na altura, o Jornal de Negócios.

A multa, o perdão possível e a suspensão para “reavaliação”

Dezenas de milhares de contribuintes receberam nos últimos dias uma multa surpresa, de largas dezenas de euros, por não se terem inscrito neste serviço que alguns nem sabiam que existia: o ViaCTT. Vários contribuintes queixaram-se de não terem sido avisados de que era obrigatório inscrever-se nessa caixa postal eletrónica (e comunicar essa inscrição ao fisco). Como não sabiam, não fizeram — e as multas, a maioria na casa dos 80 euros (por lei, até 250 euros), começaram a chegar nos últimos dias.

Dada a indignação generalizada, sobretudo pelos contribuintes visados (os que pagam IRC e IVA), o fisco acabou, primeiro, por admitir um perdão e, depois, mandar suspender todos os processos de cobrança da coima. O mais provável é que estas multas venham mesmo a ser canceladas, restando apenas saber se o Fisco vai dar provimento, e em que medida, às reclamações das pessoas que já as pagaram.

Segundo informação transmitida por fonte oficial dos CTT ao Observador, o número de aderentes da ViaCTT, atualmente, é de cerca de 1,5 milhões. Existem, segundo a mesma fonte, “diversas entidades aderentes como expedidoras para além da Autoridade Tributária, de vários setores de mercado, nomeadamente da banca e telecomunicações”. A adesão ao serviço de caixa postal eletrónica tinha crescido de forma muito lenta até que foi definida como obrigatória, na lei do Orçamento do Estado de 2012, uma iniciativa do ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio.

Depois da polémica recente, o Ministério das Finanças começou por admitir um perdão desta coima — o que implicava que as pessoas fizessem o registo no ViaCTT — mas acabou por ser emitida uma instrução para suspender o envio destas coimas, enquanto se “reavalia” a situação. A Autoridade Tributária (AT) indicou na terça-feira que “comunicou aos serviços que devia ser suspensa a tramitação de todos os processos de contraordenação instaurados por falta de comunicação à AT da adesão à Caixa Postal Eletrónica (CPE) [o ViaCTT], conforme previsto no n.º 12 do artigo 19.º da Lei Geral Tributária (LGT)”.

A AT diz ainda que estes processos de contraordenação “não devem ser objeto de qualquer decisão até que esteja concluída uma avaliação da situação e sejam emitidas novas orientações.”

Finanças enviaram instruções para suspender coimas do ViaCTT