Os fãs portugueses vestiram-se a rigor: caras pintadas de preto e branco, perucas e até um batom vermelho aqui e ali. Os Kiss não vinham a Portugal desde que deram o primeiro e único concerto em solo português, há 35 anos. O espetáculo desta terça-feira, no Estádio Municipal de Oeiras, era por isso motivo para festa. E que festa: durante duas horas, a banda de Gene Simmons e Paul Stanley percorreu uma discografia cheia de grandes êxitos, abusou na pirotecnia, nos efeitos cénicos e deixou o público a gritar por mais. Os Kiss existem há 45 anos e provaram que ainda sabem como se faz.
Depois de uma passagem por Espanha, onde tocaram no Barcelona Rock Fest, no fim de semana passado, os norte-americanos viajaram até Oeiras na companhia de outra banda não menos lendária, os Megadeth. Com um grande número de fãs em Portugal, a banda de Dave Mustaine costuma encher todas as salas por onde passa. Foi assim há sete anos, quando tocou no Pavilhão Atlântico (que desde então já mudou de nome duas vezes) com os Slayer, e de todas as outras vezes que passaram por cá. Esta terça-feira não foi exceção: escondidos entre os fãs de cara pintada, havia os que se tinham deslocado até ao Estádio de Oeiras só para ver o grupo formado por Mustaine em 1983, depois de ter saído dos Metallica. Foram eles os mais prejudicados.
Desde o início que a entrada no recinto apresentou problemas, com a fila a chegar às instalações do Hospital da Luz de Oeiras e a contornar uma parte do estádio. A caminhada até à entrada fazia-se a passo lento e, às 20h30, quando os Megadeth subiram ao palco, o cenário era ainda pior. Resultado: muitos fãs viram-se obrigados a ouvir o concerto do lado de fora do Estádio Municipal de Oeiras. Por volta das 21h, quando o espetáculo ia mais do que a meio, a indignação era tanta que a organização se viu obrigada a abrir mais uma porta de acesso ao estádio. De pouco valeu. Os mais sortudos — ou seja, aqueles que estavam perto da nova entrada — ainda conseguiram apanhar as últimas músicas e o encore. Houve, contudo, quem nem dez minutos de concerto tivesse visto. Alguns espectadores com quem o Observador falou, queixaram-se de terem passado 50 minutos na fila. Indignados, garantiram que iam reclamar junto da promotora, a Everything is New.
Claro que a indignação não dizia apenas respeito ao tempo perdido. Um concerto de Megadeth é sempre uma coisa digna de se ver. São poucos os músicos que têm o condão de não fazer sentir a passagem do tempo. Dave Mustaine é um deles. Criou os Megadeth há mais de três décadas — no mesmo ano em que os Kiss passaram pelo Dramático de Cascais para um concerto que demoraria outras quantas a repetir –, mas a atitude continua exatamente a mesma. As músicas continuam a soar tão bem como antes (a entrada do brasileiro Kiko Loureiro para a banda deu uma ajudinha) e as atuações continuam a ser tão boas como antes. Só a voz é que vai falhando, mas o resto compensa tudo.
Sem novos lançamentos desde 2016, data em saiu o álbum Dystopia, o alinhamento apresentado pelo grupo esteve recheado de todos os velhos êxitos. Começou por “Hangar 18”, passou por “The Threat Is Real” e terminou com “Symphony of Destruction”. Tudo coisas boas de se ouvir Para o encore, tocado numa altura em que a plateia já estava mais composta depois da abertura da segunda porta de acesso ao recinto, ficaram “Peace Sells” e “Holly War”. O tema do Rest in Peace encerrou o último concerto de uma tour começada há três anos, depois do lançamento de Dystopia. Agora, os Megadeth preparam-se para regressar a casa. E prometem começar em breve a gravar um novo álbum.
No intervalo depois do concerto de Megadeth, o tema das conversas era sobretudo as dificuldades de entrada no recinto. O ressentimento era muito, mas com a aproximação do concerto dos Kiss tudo se esqueceu. Fundados em 1973, em Nova Iorque, a banda de Paul Stanley e Gene Simmons não passava por Portugal desde que atuou pela primeira e única vez no antigo Dramático de Cascais, há 35 anos. Além de ter sido a estreia dos norte-americanos em solo português, a atuação de outubro de 1983 no Dramático foi mítica por outro motivo — foi a primeira vez que os Kiss se apresentaram aos fãs sem a cara pintada. O concerto desta terça-feira era, por isso, duplamente especial: para muitos, era a primeira oportunidade de ver o grupo norte-americano ao vivo e a cores; para outros, a primeira de os ver com maquilhagem.
O alinhamento do concerto não foi muito diferente do que foi apresentado nos dois últimos concertos em Espanha. A banda começou com “Duce”, música composta pelo baixista Gene Simmons e cantada por ele, e prosseguiu com “Shout It Out Loud”. Sempre com muita pirotecnia à mistura. No final do segundo tema, Paul Stanley cumprimentou “Lisboa” (ninguém lhe deve ter dito que Oeiras não era propriamente a capital) e tentou falar um bocadinho de português. Lembrando que tinha passado “muito tempo” desde que a banda tinha pisado solo português, o vocalista recordou que muita coisa tinha mudado desde então. Mas não o suficiente para fazer com que um concerto dos Kiss deixasse de ser “uma festa de rock ‘n’ roll”, tal como tinha sido em 1983. Tal como tinham anunciado no início do espetáculo, o público queria o melhor e os Kiss iam dar o melhor.
Com movimentos coreografados, plataformas prateadas e pirotecnia com fartura, os Kiss foram percorrendo todos os grandes hits de mais de 40 anos de carreira. Não faltou “I Was Made for Lovin’ You”, “Black Diamond” (cantada pelo baterista Eric Singer) e “Detroit Rock City”, esta última já em tempo de encore. “Rock and Roll All Nite” fechou o concerto, que foi sendo intercalado por momentos de maior teatralidade. O primeiro aconteceu depois de “War Machine” e de alguns temas mais antigos, retirados dos primeiros álbuns da banda: o guitarrista Tommy Thayer (membro os Kiss desde a saída definitiva de Ace Frehley, em 2002) deu espetáculo, com um longo solo que serviu de introdução a “Say Yeah” e fogo a sair-lhe da guitarra.
Thayer não foi o único que teve oportunidade de brilhar. No final de “Lick It Yp”, Simmons, um dos membros mais carismáticos dos Kiss, ficou sozinho em palco sobre uma fantasmagórica luz verde. Enquanto ia puxando as cordas do seu baixo em forma de machado, uma de cada vez, sangue fresco ia-lhe escorrendo da boca. Transformado em demónio, o baixista levantou voo com as suas asas de morcego e instalou-se numa plataforma a vários metros de altura para cantar “God of Thunder”. Já mais perto do final do espetáculo, Paul Staney, que anunciou que queria estar perto dos fãs, deslizou por um slide até uma plataforma montada no meio do recinto.
Olhando para os Kiss, é difícil não dizer que já contam com longos anos de carreira (se a voz de Mustaine já não é a mesma, o que dizer da de Stanley?), mas a experiência tem sempre as suas vantagens. Durante as duas horas que durou o concerto, não houve um pormenor que tivesse falhado, um dedo fora do sítio. Claro que há sempre imprevistos (o pano com o logótipo, que costuma cair durante a abertura do concerto, teimou em não se manter preso), mas o rock ‘n’ roll é mesmo assim. Acima de tudo, os Kiss sabem o que fazem e por que o fazem — gostam de manter os fãs contentes, entretidos, e de vê-los cantar as suas músicas do início ao fim. Gostam de um grande espetáculo — com pirotecnia, confetti, plataformas que se elevam e morcegos que voam –, e foi isso que sempre os diferenciou. Era assim Nova Iorque, em 1973, e é agora assim, em 2018. A escala é outra, claro, mas o princípio é o mesmo. Há 45 anos, os Kiss queriam ser os reis do rock ‘n’ roll e do mundo. Hoje, conseguiram-no.