Músicos que foram capazes de pôr as suas dores em grandes canções há muitos. Bob Dylan, por exemplo, na fase atormentada do disco Blood on the Tracks, Nick Drake, é claro, Jackson C. Frank, esse músico maldito que deixou um grande hino chamado “Blues Run the Game”. Bruce Springsteen, na fase Nebraska, John Prine, também. Ou ainda o grande Townes Van Zandt. A lista é enorme, mas há uma coisa que os americanos The National conseguiram que poucos lograram: fazer de canções tristes canções de estádio.
Se os seus contemporâneos The Walkmen pareciam poder caminhar na mesma direção, o fim da banda de Hamilton Leithauser deixou os The National como caso único na música popular. Nenhuma outra banda toca e canta a melancolia como eles, nenhuma outra banda deste século (os The National começaram em 1999, mas só editaram o primeiro álbum em 2001) consegue pôr tanta gente a cantar as confissões sofridas do seu vocalista. Se faltassem provas disso, que não faltavam, o concerto desta sexta-feira no NOS Alive foi esclarecedor.
A banda de Ohio tornou-se visita habitual de Portugal nos últimos anos. Tão habitual que o concerto desta sexta-feira foi o quinto nos últimos seis anos em território nacional. Numa noite em que dividiram o protagonismo no palco NOS com os cabeças de cartaz Queens of the Stone Age, os The National deram mais um concerto de grande nível.
Não foi perfeito: houve por exemplo notas falhadas na voz de Matt Berninger. Mas isso interessa pouco porque os The National não procuram a perfeição. É quando Berninger grita já desafinado, quando olha o horizonte como quem suporta fardos pesados, quando vagueia pelo palco de copo na mão em frente a mais de 40 mil pessoas como se estivesse a encerrar um bar decrépito e vazio, que mais se expõe perante o público. É aí que todas as dores da plateia se confundem com as do cantor, numa bonita expiação de fantasmas. E é aí que fica provado que a exposição das fragilidades, dos fracassos, das dores, enfim, da humanidade, é a linha que cose as diferenças. Uma boa lição, numa época em que a agressividade e a inflexibidade são notas dominante na política e nas relações sociais e profissionais.
O começo foi ao som de “Nobody Else Will Be There”, um dos bons temas do último álbum dos The National, Sleep Well Beast, editado no ano passado. A banda dedicou apenas perto de um quarto do concerto aos temas novos. Além desta canção, tocou apenas “Carin at the Liquor Store”, “Day I Die” e “Walk It Back”, revelando argúcia ao escolher apenas as melhores canções do novo trabalho.
Os êxitos antigos ouviram-se quase todos. Só faltaram “Mistaken For Strangers”, “Start a War” e “Apartment Story”, mas mesmo destes “clássicos”, só se sentiu verdadeiramente a ausência do primeiro. “Start a War” e “Apartment Story” podiam ter integrado o alinhamento, como o poderiam ter integrado “Sea of Love” e “Demons”, singles mais recentes. Porém, a acertada duração do concerto, que não foi excessivamente longo e que por isso não cansou os fãs de Queens of the Stone Age, justificou plenamente as ausências.
A música dos The National faz-se da intermitência entre a catarse do rock e as confissões melancólicas, cantadas com desalento por Berninger. E isso viu-se cedo, logo na transição entre o terceiro e o quarto tema: se “Don’t Swallow the Cap” acabou com os irmãos Dressner (Aaron e Bryce) a rockar nas guitarras, a belíssima (e recente) “Walk it Back” começou com acordes delicados e espaçados, até ficar no limiar da explosão das guitarras e bateria — que nunca se materializaria totalmente.
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“Alguns dos nossos melhores concertos foram em Portugal, portanto é fantástico estar aqui. Esta é para vocês”, disse Matt Berninger, depois de cantar “Guilty Party” e antes de “Bloodbuzz Ohio”, uma das melhores canções do grup, que no Passeio Marítimo de Algés foi apresentada em versão ligeiramente diferente, mais lenta e sofrida.
Por essa altura, já o cantor vagueava lentamente pelo palco, estivesse a cantar de microfone na mão ou simplesmente a ouvir a banda tocar. Seguiu-se a atormentada e bela “I Need My Girl”, em que Berninger canta versos como “Remember when you lost your shit / And drove the car into the garden / You got out and said I’m sorry to the vines / And no one saw it” e “Davy says that I look taller / But I can’t get my head around it / I keep feeling smaller and smaller”. Este tema antecedeu “Day I Die” e o momento em que o vocalista se aproximou pela primeira vez do público, deixando os fãs abraçá-lo e agarrá-lo e erguendo o telemóvel de um deles para se filmar a si próprio.
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O concerto prosseguiu com “Carin at the Licor Store” e as belíssimas notas de piano que a introduzem. Pela primeira vez no concerto, Berninger pareceu fraquejar, falhou-lhe a voz. “I see you in stations and on invitations”, cantou. Veio então “Fake Empire”, apresentada também em registo mais calmo, mas originado um dos momentos de maior apoteose da noite. Depois de “Rylan”, ninguém mais controlou Matt Berninger: o cantor pôs as mãos na cara, deambulou pelo palco, deu mais um gole num dos copos que durante o concerto lhe passaram pela mão (e que tiveram quase todos o mesmo destino, serem atirados ao ar, alguns ainda com bebida), irrompeu pelo público e dirigiu-se a uma banca de cervejas durante a grandiosa “Mr. November”. Quando cantou sobre um “terrible love” (na faixa assim intitulada), fê-lo com um desencanto tal que a expressão “esta música é tãaaaaao top”, que ouvimos ao nosso lado, pareceu quase insultuosa.
“Esta manhã vi as notícias. Foi uma má ideia. Isto ajuda, está a ser uma grande festa, um espetáculo”, apontou Berninger. O concerto terminou com a intimidade de “About Today”. Do espetáculo, ficou uma certeza: os The National são mesmo uma das maiores e melhores bandas nascidas nas últimas duas décadas. E dois desejos: que as frustrações quotidianas de Berninger continuem a inspirar tão boas canções no futuro e que nós continuemos sem sentir grandes saudades da sua banda, tal é a regularidade com que vêm a Portugal.