A imagem ficou na retina de quem acompanhou os últimos momentos da final entre a França e a Croácia. Didier Deschamps tinha acabado de vencer, estava prestes a levantar a taça, mas não se esqueceu de quem estava do outro lado. Um a um, foi cumprimentar todos os jogadores derrotados. Abraçou-os, disse-lhes palavras de incentivo. Afinal, também ele já pisou os campos. Também ele sabia como era estar naquele lugar, como atleta ou treinador.
Sabia, mas não muito. É que o selecionador francês – conhecido no seu país apenas pelas iniciais ‘DD’ – tem fama de ter pé quente. Que é como quem diz, na gíria do futebol, alguém que atrai a sorte para as suas equipas e está sempre mais perto de ganhar do que de perder. De tal forma que os humoristas gráficos da imprensa gaulesa o representam com um gato, animal associado à boa sorte. Mas terá sido preciso muito mais do que isso para chegar ao patamar onde está desde este domingo: no restrito lote de três pessoas a terem ganho um Mundial como jogador (1998) e treinador (2018) – além do brasileiro Zagallo e do alemão Beckembauer.
Conhecido por ser organizado, aguerrido, ambicioso e incansável – tudo predicados dos campeões –, Deschamps é apontado como alguém que conhece ao detalhe o que é estar num balneário e na pele de um jogador (como demonstrou, aliás, este domingo). “Sabe como falar com os jogadores. Tem uma estrela. Ganhou-a com a França sendo um grande jogador, um capitão, um líder”, comentou o seu discípulo Paul Pogba.
Chegou a selecionador depois do Europeu de 2012, onde a França ficou pelos quartos de final, para substituir Laurent Blanc e agarrar uma seleção a precisar de novos trilhos. Mas os primeiros tempos não foram fáceis: a equipa gaulesa somou cinco derrotas e quatro empates nos primeiros 13 jogos, o pior registo de um selecionador francês em 50 anos, e esteve quase a ver o Mundial de 2014 por um canudo. Precisou do playoff diante da Ucrânia para carimbar o passaporte mas, mais uma vez, a França ficava pelos quartos de final – desta vez diante da Alemanha, que se viria a sagrar campeã do mundo.
A prova seguinte, o Europeu de 2016, trouxe o sabor amargo de ser finalista derrotado em casa por Portugal. Mas trouxe também a polémica. Deixou Benzema fora das opções e o avançado do Real Madrid não teve meias medidas: acusou-o de racismo. “Ele cedeu à pressão de uma parte racista da França. Tem que saber que, na França, o partido extremista chegou à segunda fase das últimas eleições. Não sei, portanto, se é uma decisão apenas de Didier, porque me dou bem com ele”. O jogador francês referia-se ao partido Frente Nacional, que vinha de bons resultados nas últimas eleições, e que é acusado de racismo em relação aos imigrantes – Benzema é argelino.
De jogador de râguebi a campeão da Europa em futebol
Vinte anos separam as duas conquistas mais importantes de Deschamps pela França. Este domingo, como treinador; em julho de 1998, como jogador. O adversário era o favorito Brasil, mas a verdade é que o jogo foi um autêntico monólogo da seleção gaulesa. Zidane foi a estrela mais brilhante da constelação: apontou dois golos de cabeça que deixaram Taffarel pregado ao chão. A seleção conquistava o primeiro Mundial da sua história e logo a jogar em casa.
Deschamps era o líder dessa equipa, ostentando no braço a argola de tecido que o fazia capitão de uma geração de ouro que ficou para a história. O médio aliava a capacidade defensiva à criatividade, tornando-se um elemento fulcral nas equipas por onde passava. Era muitas vezes visto como o jogador que dava a Zidane a tranquilidade para brilhar na frente; tanto na seleção, como na Juventus, onde alinharam juntos.
Mas toda esta história até podia ter nem ter acontecido, bastava Deschamps ter cedido à paixão pelo râguebi, desporto que praticou na adolescência antes de se dedicar ao futebol nas escolinhas do Aviron Bayonnais. Aos 15 anos, a vida mudou quando despertou o interesse dos olheiros do Nantes. Para lá se mudou em 1985, estava Cristiano Ronaldo a nascer, e por lá ficou, já como profissional, durante cinco temporadas. Foi então que o poderoso Marselha – que contava com estrelas como Jean-Pierre Papin ou Jean Tigana – olhou para eles com outros olhos e o médio francês fez as malas.
Por lá, capitaneou a equipa que venceu a Liga dos Campeões em 1992/93, depois do triunfo por 1-0 sobre o AC Milan de Papin (o antigo companheiro tinha acabado de se mudar para Itália), e que é, ainda hoje, a única conquista da prova por uma equipa francesa (apesar de toda a polémica que se gerou a seguir por suspeita de viciação de resultados). Só que menos de uma semana depois, o clube mergulhou numa crise profunda. Tinha acabado de ser campeão, mas o defesa do Valenciennes, Jean-Jacques Eydelie, fez a denúncia de que o emblema marselhês teria subornado jogadores para facilitarem resultados. As autoridades haveriam de encontrar 250 mil francos (cerca de 38 mil euros) no quintal de um dos jogadores da equipa, Christophe Robert, e com isso o Marselha perdeu o título e desceu de divisão.
Sem querer jogar em escalões inferiores, transferiu-se para Itália e para a Juventus da ‘era Moggi’ – presidente que queria quebrar a hegemonia do AC Milan, tanto no país transalpino, como na Europa. Nos primeiros tempos teve azar – também lhe acontece: uma lesão no tendão de Aquiles deixou-o fora dos relvados quase metade da temporada. Mesmo assim, ainda foi campeão (a Juve não vencia o título há nove anos), conquistou a Taça de Itália e foi finalista da Taça UEFA. Alinhando ao lado de Paulo Sousa e de Antonio Conte, formou o meio campo que viria a conquistar a Liga dos Campeões em 1995/96 – e ainda foi eleito jogador francês do ano.
Conquistou tudo o que havia para conquistar pela Vecchia Signora, até que deixou de ser titular e os problemas com Marcelo Lippi começaram a estalar. Estava na hora de mudar de ares. E Esses ares foram os do Chelsea. A mudança foi ousada – afinal os blues eram, na época, um clube mediano, sem história nem títulos de relevo. Lá encontrou os compatriotas Franck Leboeuf e Marcel Desailly, com os quais levou o emblema de Londres à conquista da Taça de Inglaterra e aos quartos de final da Liga dos Campeões. Apesar disso, o futebol inglês não encantou Deschamps, que ainda fez mais uma temporada no Valência, até se retirar, vergado às sucessivas lesões.
Do outro lado do FC Porto campeão europeu
Lembra-se de lhe termos falado da capacidade de liderança de Deschamps? Essa característica, associada à experiência (em títulos, em anos de profissão e em ligas por onde passou) colaram-lhe à pele o rótulo de treinador com futuro. O Mónaco chegou-se à frente e contratou-o. O agora técnico haveria de passar cinco épocas nos monegascos, onde chegou à final da Liga dos Campeões na qual o FC Porto haveria de se sagrar campeão europeu. Aqui, o pé quente não funcionou – mas há que considerar que do outro lado da barricada estava o Special One José Mourinho.
Haveria ainda de voltar à Juventus, agora como técnico, com a tarefa ingrata de fazer a Vecchia Signora subir de divisão, depois do escândalo de manipulação de resultados que levou o clube à despromoção. Era preciso um homem da casa para segurar as rédeas da equipa e Deschamps era esse homem. Cumpriu aquilo a que se propôs, ainda lançou jogadores como Claudio Marchisio e Sebastian Giovinco, mas divergências com um diretor do clube bianconeri haveriam de o fazer bater a porta. Teve de fazer a travessia do deserto – ou seja, dois anos sem clube – para encontrar abrigo noutra casa que bem o conhecia. ‘DD’ regressava ao Marselha, levando o clube a ser campeão 18 anos depois, e ainda “limpou” uma Taça da Liga e uma Supertaça.
O Liverpool meteu-se ao barulho e ainda tentou levar o técnico, mas o coração indicou-lhe outro caminho: o da seleção francesa. Aquela que tinha capitaneado, aquela onde tinha sido campeão do mundo (1998) e da Europa (200o), aquela que tanto precisava de outro rumo. Esse rumo cumpriu os seus resultados este domingo. A França bem pode agradecer ao pé quente do seu ‘DD’.