Se Sir George Ivan Morrison fosse um cavaleiro de outras eras, era homem para se meter em sarilhos. Imprevisível até para quem lhe é próximo, com um feitio que já incomodou tanta gente (um executivo da Warner Brothers chegou a chamar-lhe “um tipo pequeno e odioso”) e pouco dado a formalidades: eis uma receita que não lhe traria grande sorte. Como Van Morrison nasceu mais tarde, três dias antes do fim da Segunda Guerra Mundial, foi tornado cavaleiro apenas em 2016 e ostenta o título pelas canções que gravou e não por sangue azul ou bom manuseio de armas, é em palco e não nas cortes e combates que o irlandês manda os bons costumes às urtigas. Ainda bem, é mais seguro assim e o mau feitio é melhor empregue, como se viu e ouviu este sábado, no festival EDP Cool Jazz.

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Palavras de cortesia e circunstância dirigidas a um público que não o ouvia há 20 anos? Uns (poucos) “thanks” de agradecimento não contam. Clássicos tocados de forma direitinha, para serem facilmente cantarolados? Isso queriam vocês. E ainda assim, trocando as voltas às canções e ao público menos conhecedor das suas manias, Van Morrison deu um excelente concerto no Hipódromo Manuel Possolo, em Cascais.

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Hoje com 72 anos, Van Morrison está longe de ser o rapaz irascível de Belfast que se lançou na música ainda adolescente. O rapaz que experimentou o rhythm and blues (mais e menos rockeiro), a soul, os blues, o gospel, o jazz e a música folk, até misturar tudo num caldeirão só seu. A procura de um som novo que servisse de base a grandes canções era a ambição e é ainda o que o move em estúdio e em palco, como se percebe ao vivo. Há sempre uns acordes por introduzir nos êxitos já conhecidos, um swing gostoso que se pode acrescentar a uma canção pouco jazzística, uns solos inesperados que acrescentam brilho à performance.

Como Van Morrison dizia há tempos numa entrevista rara, porque gosta de poupar as palavras para as cantar, não há dois concertos iguais, não há um espetáculo em que não arrisque sair fora de pé, não há canção que não possa ganhar um figurino novo de uma semana para a outra. Fazer isto quando se canta sempre bem até quando se falha as notas e se enrola as palavras — “é o melhor pior cantor”, ouvimos ao nosso lado –, quando se toca saxofone e harmónica com aquela desenvoltura, quando atrás há uma banda de músicos tão virtuosos quanto experimentados e um coro feminino que arrebata até o mais reticente dos ouvintes, é mais fácil, claro que é. É por isso que não é Van Morrison quem quer.

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O concerto deste sábado no Cool Jazz foi tudo isto. Começou exatamente às 20h30, tal como estava anunciado. Pontualidade britânica a que o público ibérico, mais habituado a atrasos, torceu o nariz. Não só porque ainda nem toda a gente tinha entrado, culpa de problemas na eletricidade que, justifica a organização, atrapalharam os acessos a um festival patrocinado pela maior elétrica nacional, mas também porque havia gente que tinha acabado de chegar, que estava nas longas filas para jantar. Porque, enfim, “um concerto nunca começa a horas. E logo este tinha de começar…”

Houve quem perdesse o arranque bluesy, Van Morrison com o habitual fato às riscas, de chapéus e óculos escuros, num agradável início de noite de verão. Seja por que se atrasou, seja pelas demoras excessivas no acesso ao recinto e na (pequena) zona de restauração. Houve até quem tivesse perdido “The Way Young Lovers Do”, uma das poucas canções que se ouviu este sábado do magnífico Astral Weeks, segundo disco que Van Morrison editou, há precisamente 50 anos, e que à época só não o convenceu mesmo a ele. Mas logo a seguir veio uma magnífica versão de “I Can Tell”, composta por Samuel Smith e gravada em 1962 por Bo Diddley e em 2017 por Van Morrison (no álbum Roll With The Punches, o 37º do músico irlandês), a que o coro feminino que acompanhou o músico e a restante banda muito impulsionou. E compôs-se a plateia, onde se viram bastantes turistas, muita dança e muitos cumprimentos de um só beijinho, não estivéssemos em Cascais e num festival maioritariamente virado para um público de classe média-alta, que paga bilhete diário para ver um músico cool jazz e não um bilhete para viver uma “experiência festival”.

Não foi a única versão que Van Morrison levou a Cascais, houve mais, destacando-se sobretudo um medley de homenagem a Muddy Waters, com as canções “Got My Mojo Working” e “Baby, Please Don’t Go”, popularizadas pela lenda dos blues, a tornarem-se mais jazzísticas em Cascais. Sempre com Van Morrison entre o microfone, saxofone e harmónica, mais preocupado com a relação da voz com os instrumentos do que com a dicção, apanhando o tom ideal à medida que a jam avançava. Como se nos quisesse lembrar que a perfeição é coisa sobrevalorizada, que cantar direitinho é menos importante do que cantar com gosto, que o truque é ir testando notas até chegar à comunhão perfeita com os músicos. Se a noite correr bem, como correu, o risco resulta em dois ou três momentos de genialidade.

O flirt entre blues e jazz, com uns pós de boogie-woogie, foi constante nas novas versões que Van Morrison e a sua banda apresentaram, entre origens a covers. Houve passagem por temas recentemente gravados, como “Broken Record”, “Bye Bye Blackbird” (de Ray Henderson and Mort Dixon) e “The Party’s Over” (de Betty Comden, Adolph Green e Jule Styne). E houve passagem pelos anos 1990, com a fabulosa “Days Like This”, “Precious Time” e uma “Sometimes we cry” que foi momento alto, com a cantora Dana Masters (do coro) a ter o seu espaço para brilhar.

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Ouviu-se, é claro, “Moondance” e ouviu-se “Have I Told You Lately”, esta segunda apresentada em versão quase irreconhecível, restando os versos para nos alertar que o blues-jazz que ouvíamos era a canção mais pop e redondinha que Van Morrison já fez. E houve ainda, a anteceder o final do concerto, uma “Brown Eyed Girl” que levantou o público da plateia sentada, que até aí tinha estado quase sempre silencioso e recostado. O encerramento, sem encore, foi com “Gloria”, canção emblemática que Van Morrison gravou quando tinha menos de 20 anos e fazia parte dos Them, que já virou quase um standard de tanto ter sido tocada e que, pelo seu ritmo mais acelerado, agitou músicos em palco e público à frente. Acabou tudo em improviso da banda e num longo solo de bateria, já com Van Morrison retirado e sem se despedir convenientemente, claro, primeiro porque a conveniência lhe causa comichão, depois porque isto foi só mais uma noite para o irlandês. Mas está tudo bem, também foi só mais um privilégio para quem o ouviu.

O irlandês já não tem a voz límpida do passado, já não é o rapaz irascível que vai da nota mais delicada à nota mais aguda e ao quase grito como acontecia há 50 anos. Van Morrison já não é, sequer, o rapaz que encantou o mundo com a ginga e confiança de Moondance, com a soul enternecedora de “Crazy Love”. Van Morrison é hoje sir George Ivan Morrison, 72 anos, mais clássico do que nunca, mais fã dos standards e do jazz canónico do que alguma vez foi. Ele próprio hoje canónico, mostrou-se interessado em exibir tanto quanto possível o virtuosismo dos músicos que o acompanham.

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É verdade que no EDP Cool Jazz não se ouviu o Van Morrison a roçar a perfeição dos tempos áureos, que não se ouviu sequer um Van Morrison que procurasse revisitar o mais fielmente que a voz de hoje lhe permite um passado a que nem ele nem nenhum de nós alguma vez regressará. O que se ouviu foi Van Morrison já indiferente ao que lhe é exterior, ao que é exterior à música, incapaz de fazer fretes ou de tocar e cantar de outra maneira que não a que lhe apetece. Não foi perfeito, foi mais do que suficiente, foi bom, na reta final de uma temporada de festivais que já tinha trazido a Portugal gente como Nick Cave e David Byrne e no decurso de um ano que foi também o ano de Bob Dylan e Roger Waters no Pavilhão Atlântico. Velhas glórias? Queriam muitos de 20 anos…