Dias 26 e 27 de julho, na pacata cidade brasileira de Paraty, um homem ficou fechado por 30 horas num coreto em forma de jaula, o que até poderia ter sido um incidente, mas foi afinal uma performance – último ato do Babel Book Award (BBA), prémio literário fictício de 200 mil euros que fez brilhar os olhos de muitos escritores e editores lusófonos, antes de os pôr a espumar de raiva.

O homem dentro da jaula era Antonio Salvador, pseudónimo literário do brasileiro Júlio César Pereira. Sentado a uma mesa despida e com uma máquina de escrever à frente, montou uma performance intitulada “Petróleo”, com o objetivo de causar impacto durante o Festival Literário Internacional de Paraty (Flip), que decorria por aqueles dias.

Em entrevista ao Observador, esta semana, Antonio Salvador sustentou que o BBA, lançado em fevereiro, nunca pretendeu ser um prémio literário clássico, antes uma performance artística, um escárnio às regras que governam a indústria da literatura, uma crítica insolente à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Acrescentou que “a interação com o público foi muito generosa” em Paraty e disse que “algumas figurinhas do mercado editorial” brasileiro também assistiram ao acontecimento, mas “passaram ao longe”.

O caminho foi longo. As 30 horas na jaula somam-se aos cinco meses anteriores marcados pela total dissimulação sobre as reais intenções do BBA. Incongruências várias começaram a ser denunciadas, e fortemente criticadas, a meio do processo e ainda agora há setores do meio literário brasileiro e português em fúria por terem caído no logro. Alguns autores ponderam processar o performer e acusá-lo de burla, mas não terão formalizado qualquer queixa até ao momento. O Observador procurou ouvir alguns críticos, mas estes não quiseram ser citados ou nem responderam às tentativas de contacto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Artistas invejam jogadores de futebol”

Antonio Salvador explicou-nos que o BBA é uma performance baseada na linguagem artística de coletivos como o suíço etoy.Corporation, que se apropria de elementos da realidade e os apresenta como verídicos, para assim produzir intervenções artísticas de grande impacto.

“O BBA era isso mesmo: uma apropriação de elementos do mundo editorial, ou seja, a ideia dos prémios, das fundações, dos curadores. Toda essa arquitetura linguística constituiu a grande escultura que era a performance BBA”, explicou Salvador.

Sobre o alegado abuso da boa-fé de escritores e editores, que enviaram originais para um concurso que nunca os iria selecionar, o mentor disse que “a ilusão é pretérita” ao prémio. Explicou longamente:

“Há uma ilusão criada e fomentada pelo mercado editorial em toda a parte, não só no Brasil. Não é a ilusão do dinheiro, mas a ilusão de que o valor de uma obra só é determinado quando o mercado decide. Falei com Boris Groys, que é talvez o mais importante crítico de arte do mundo inteiro, e expus-lhe toda esta situação. Ele entende que o meio literário reagiu mal porque a nossa sociedade é regida por regras desportivas. Os artistas, de uma maneira geral, invejam nos jogadores de futebol o drama do vencedor e o drama do perdedor. No futebol, é fácil: quem faz mais golos, ganha. Na arte é muito difícil dizer que esta obra é melhor do que aquela. Ainda assim, os artistas, de um modo geral, anseiam por essa determinação. O mercado começou por celebrar o BBA porque o prémio celebrava os mecanismos de atribuição de valor desse mesmo mercado, mas quando percebeu que o prémio era não-convencional, o mercado ressentiu-se e reagiu com intolerância.”

Além do mais, o ideólogo desta farsa tornada arte defende que só um simulacro de grande calibre alcançaria o efeito pretendido.

“Evidentemente, como autor, poderia escrever um livro que fosse uma grande sátira sobre o mundo editorial, mas essa seria uma crítica de fora para dentro, um autor criticando um mercado, ou seja, uma pulga no dorso do leão. A melhor crítica, a mais pujante, era ser mercado, ser prémio, ser expectativa de glamour.”

Além de “Petróleo”, Salvador aproveitou a estada em Paraty para um outro ato performativo. Também no dia 27, no espaço Cinema da Praça, organizou uma sessão pública para anunciar, aí sim, o vencedor do famigerado Babel, e este foi Juan Tomás Ávila Laurel, escritor natural da Guiné-Equatorial, presumível cúmplice. Laurel não recebeu os 200 mil euros anunciados, porque tal soma nunca esteve alocada ao BBA, e também não esteve presente na Flip, mas terá enviado um discurso que o próprio Salvador se encarregou de ler. Trata-se de uma voz crítica da adesão da Guiné-Equatorial à CPLP e do regime político do velho ditador Teodoro Obiang.

“Achámos que ele seria perfeito para vencer”, afirmou Antonio Salvador. “Escreveu um discurso maravilhoso onde explicava todo o processo histórico da Guiné-Equatorial, desde a colonização até à tomada do poder pela casta nativa, que é tão ou mais perversa que a casta colonizadora. A ironia era essa: quem ganha um prémio de homenagem à língua portuguesa é um autor nascido num estado-membro da CPLP onde não se fala português nem jamais se falará.”

De resto, segundo Salvador, a entrega deste prémio simbólico esteve para acontecer na sede da CPLP em Lisboa, mas a vaga de críticas levou a entidade a inviabilizar essa hipótese.

Note-se que as duas performances não fizeram parte do programa oficial da Flip, mas foram autorizadas pelos organizadores em resposta não a um pedido de Antonio Salvador, mas da produtora de cinema Deusdará, de São Paulo. Isto porque vários momentos deste meio ano peformático, foram registados em vídeo pelo realizador brasileiro Leonardo Brant e daí resultará um documentário que poderá estrear-se no segundo semestre de 2019, segundo Antonio Salvador.

Depois da jaula, Antonio Salvador anunciou Juan Tomás Ávila Laurel como vencedor do prémio Babel

A ombrear com Hilda Hilst

Escritor e jurista, Antonio Salvador vive em Berlim e nasceu no Rio Grande do Norte, em 1980, tendo-se estreado no romance em 2012, com “A Condessa de Picaçurova”. Com o BBA alcançou uma notoriedade tremenda.

O galardão começou a ser falado em fevereiro e estaria já na terceira edição, sendo organizado pela Fundação Weltsprachen (que se percebeu não existir) com curadoria de Andreas A. Fiedler (nome de um jornalista russo, que não sabia de nada). Prometia uns inacreditáveis 200 mil euros ao melhor romance inédito de língua portuguesa, com o vencedor a ser anunciado em julho. O regulamento estava publicado no endereço babelbookaward.com.

Quem fez soar os alarmes para a inverosimilhança foi Paulo Werneck, editor da revista literária “Quatro Cinco Um”, de São Paulo. Nessa altura, já vários autores tinham enviado originais através de correio eletrónico, incluindo portugueses.

Em março, a polémica atingiu o auge, com as redes sociais e a imprensa brasileira a acusarem Salvador de ser um farsante e o BBA de só existir numa página de internet. Dizia-se que o escritor-jurista teria tido dois objetivos: apoderar-se dos originais enviados pelos concorrentes e sagrar-se ele próprio vencedor, o que lhe aumentaria a cotação no mercado editorial.

Até que ponto esta aventura lhe prejudicou irreversivelmente a credibilidade enquanto autor, Salvador não conjetura. Mas teoriza.

“O final do prémio aconteceu num festival em que a homenageada era Hilda Hilst, a escritora mais defenestrada da história recente da literatura brasileira, que construiu obra como um ato de agressão ao mercado. Acho que o artista tem de acreditar na própria obra. Ser ou não rejeitado, é-me irrelevante, o que importa é a obra”, disse.

Nas redes sociais, aventam-se agora novas hipóteses. Uma delas: que as duas performances em Paraty foram tão-só um golpe de última hora para que Salvador salvasse a face neste imbróglio. Instado a comentar, reagiu com gargalhadas. “Se eu tivesse conseguido transformar um crise pessoal numa obra de arte, então seria um génio da humanidade.” Também lhe atribuem uma capacidade persuasiva fora de série e uma queda para o egocentrismo.