Não faltaram avisos nem sinais de que algo poderia correr mal. Em fevereiro deste ano, a quatro meses dos 200 anos de vida do Museu Nacional brasileiro, o seu diretor deixava mais um apelo. Havia animais dentro do edifício que podiam destruir o património ali guardado e a degradação era evidente em vários pontos.
“Felizmente essas pragas [morcegos e gambás] não têm aparecido no acervo, mas ainda podem ser vistas nas áreas comuns. O maior problema são as goteiras. Ficamos preocupados quando cai uma tempestade porque só temos verbas para medidas paliativas de prevenção”, reclamava Alexander Kellner ao jornal O Globo, lamentando a falta de verbas para restaurar e proteger a histórica Quinta da Boa Vista.
Em maio deste ano, um novo apelo do responsável pelo mais importante património histórico do Brasil. “Essa sala reflete o que o museu é: grandeza, com problemas”, descrevia à Folha de São Paulo, sentado num gabinete que em tempos serviu de quarto a D. Pedro I e que expunha agora uma violenta infiltração do teto até ao chão.
Reabri a sala pelo simbolismo, a gente deixa claro que não oculta os problemas, mas temos uma grandeza que ninguém tem, conquistado ao longo de dois séculos.”
A grandeza da história corria assim em paralelo com a grandeza dos problemas que estavam registados e se agravavam a cada dia. Além das infiltrações nas paredes, era visível a pintura descascada em muitos espaços do edifício, fios elétricos expostos e descarnados e outros elementos de degradação que saltavam à vista de quem pagava oito reais (cerca de 1,7 euros) de bilhete para visitar as poucas salas que mantinham exposições.
Ao mau estado de conservação juntou-se nos últimos tempos a invasão de várias espécies animais. Um ataque de térmitas obrigou mesmo ao fecho de uma das mais importantes salas do museu, onde se expunha um esqueleto de baleia jubarte e um dinoprata, o primeiro dinossauro de grande porte montado no país e descoberto em Minas Gerais que terá vivido há 80 milhões de anos. E eram frequentes as visitas de morcegos e gambás na quinta.
O que faltou? O que falhou?
Ainda no rescaldo do fogo, as críticas multiplicam-se e ouvem-se até de investigadores. É o caso de Walter Neves, antropólogo conhecido como “pai da Luzia”, por ter descrito o fóssil que é considerado o fóssil humano mais antigo das Américas, com 11 mil anos e um dos artigos desaparecidos no fogo. “A dúvida não era se algo assim poderia acontecer, mas quando iria acontecer”, disse o investigador ao Estadão.
O museu estava jogado apodrecendo, incluindo a parte elétrica”, criticou Walter Neves, agora professor aposentado da Universidade de São Paulo. O incêndio “é uma consequência direta do descaso do poder público”, acusa.
O pesquisador criticou ainda o destino dos recursos. “Gastaram milhões para construir um museu do futuro (Museu do Amanhã), enquanto um museu centenário, que guarda a história do Brasil, ficou largado às traças.”
A falta de financiamento é, por isso, uma das explicações para que o Museu Nacional no Rio de Janeiro atingisse um tal estado de degradação e lhe faltasse qualquer proteção eficaz contra acidentes como o devastador incêndio que o destruiu na noite do último domingo. E, por isso, há pelo menos três anos que o Museu Nacional tem funcionado com cortes orçamentais, conforme relata a imprensa brasileira, sofrendo assim o impacto da própria crise financeira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a entidade responsável pela sua gestão.
O museu deixou assim de receber os 520 mil reais anuais que garantiriam a sua manutenção — em 2018, o orçamento estava em 54 mil reais. A crise financeira é tal que a direção do museu anunciou um peditório virtual para reunir pelo menos 50 mil reais para restaurar e reabrir a sala mais importante de todo o espaço, onde estava o dinossauro, valor que não terá chegado a alcançar.
Segundo Alexander Kellner, seriam precisos 300 milhões de reais (cerca de 64 milhões de euros) ao longo de uma década para conseguir recuperar um museu que não era visitado por nenhum presidente brasileiro desde Juscelino Kubitschek. Nesse sentido, tinha sido feito um protocolo com o BNDES para que financiasse em 21,7 milhões o projeto de restauração do edifício a partir deste ano. Também a Universidade já se tinha comprometido a reforçar as verbas orçamentais este ano no sentido de ajudar à recuperação do museu
Com o incêndio da última madrugada, ficaram expostas todas as falhas e fragilidades daquele espaço. As bocas de incêndio existentes não tinham água, o que dificultou o trabalho dos bombeiros e os atrasou em pelo menos 40 minutos — foram obrigados a chamar camiões-cisterna e recorreram a água do lago existente na Quinta da Boa Vista para conseguir combater as chamas, conforme relatou o comandante-geral, coronel Roberto Robadey Costa Junior. Além disso, a existência de áreas sem proteção onde se armazenavam produtos químicos e altamente inflamáveis, muitos deles usados para conservação de animais, ajudou à combustão rápida do património.
Pelo meio, e entre tetos e pavimentos que desabaram durante o fogo, as equipas de 20 quartéis de bombeiros conseguiram resgatar uma parte do acervo, com a ajuda de funcionários, investigadores e agentes de segurança, mas ainda não é possível saber que parte do património se conseguiu salvar. Falta também apurar o que causou o incêndio.
E depois das chamas?
Muitos foram os que acorreram ao local durante as operações de combate ao fogo. João Wagner Alencar Castro chegou à Quinta da Boavista perto das 21h30. “É um prejuízo incalculável. A ciência e a história brasileira estão sendo queimadas”, disse o professor de geologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro à Folha de São Paulo. “Estamos muito emocionados. É como se tivesse morrido alguém muito próximo.”
Ainda assim, João Castro estima que dos 20 milhões de itens que constituem o acervo do museu, dos quais apenas 1% estavam expostos, cerca de 20% tenham sobrevivido. É nesta perspetiva que se apoia o Ministro da Cultura brasileiro. Ainda antes das operações de rescaldo terem sido terminadas, já Sérgio Sá Leitão anunciava planos de reconstrução.
Já falei com o presidente Michel Temer e com o ministro da educação [que tutela o museu]. Amanhã [segunda-feira, 3 de setembro] vamos começar a fazer o projeto de reconstrução do Museu Nacional. Para ver quanto é e como viabilizar”.
O ministro, que sublinhou a necessidade de “descobrir a causa e apurar a responsabilidade” deste incêndio, afirmou também ter ordenado um levantamento das condições de proteção contra incêndios de todos os museus federais. Segundo Sérgio Sá Leitão, o incêndio ocorre quando estava a ser um acordo de financiamento do museu. “Isso acontece justo agora, que medidas estavam a ser tomadas. O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social] assinou em junho um contrato de patrocínio no valor de 21,7 milhões de reais. O Instituto Brasileiro de Museus realizou diversas ações. Infelizmente não foi suficiente. Certamente a tragédia poderia ter sido evitada”, lamentou o político.
Incêndio. O que falhou no Museu Nacional brasileiro que o fogo destruiu