Não basta ser-se um bom observador, é preciso equilibrar empatia e distanciamento na medida certa para se conseguir traduzir amigos reais para personagens de ficção. “É cá uma personagem”, dizemos, não por acaso, daquele que quase roubou um táxi à porta de um hotel de 5 estrelas ou que, sempre que uma festa está chata, planeia viajar para a Tailândia mas nunca vai.
Boas histórias para noites de copos, mas quão verosímeis? Quão interessantes para quem não conhece o nosso amigo? Ou, directamente ao busílis deste artigo: será que existe mesmo um tipo que se autointitula “The Dude”, que é um ex-activista político indigente e que só bebe White Russians? Não é difícil acreditar que sim — porque existe, chama-se Jeff Dowd e é um produtor de cinema amigo dos irmãos Coen –, mas é incrível que estas características tenham sido o ponto de partida para uma das personagens mais icónicas do cinema: o herói relutante Jeffrey “The Dude” Lebowski, interpretado por Jeff Bridges há precisamente 20 anos. E, ao escrever “herói” (e não anti-herói), desejo sublinhar como é épico sobreviver-se a circunstâncias da vida pelas quais não se é de todo responsável. É o que faz The Dude em “O Grande Lebowski” e é um bocado aquilo que andamos todos aqui a fazer.
“Talvez haja algo geracional no Dude”, afirma o radialista e fã confesso do filme Luís Oliveira. “É um bocadinho aquela ideia que seria bom continuarmos a crescer sem grandes problemas para resolver na nossa vida. Ou mesmo sem crescer, de todo. Eu também sou assim um bocadinho um adulto relutante que odeia falar de dinheiro ou pagar contas ou tratar de burocracias”.
Depois do Óscar de Melhor Argumento por “Fargo”, os realizadores e argumentistas Joel e Ethan Coen foram estraçalhados pela crítica: O Grande Lebowski é um filme sobre um tipo que se vê envolvido numa trama policial mas que preferia estar a jogar bowling. Mas se em Fargo tudo o que falha é meticulosamente bordado, em “O Grande Lebowski” o ponto da narrativa é aparentemente laço e aldrabado.
Motivado por dinheiro, mas não o suficiente para se meter em trabalhos, The Dude é arrastado para a acção por uma mistura confusa de ética, hedonismo e laxismo. E isto é obviamente um excesso interpretativo, porque o verdadeiro chamamento deste herói é a sua estima por um tapete sobre o qual um mânfio decide urinar no seguimento de um mal entendido que o empurra para um emaranhado de outros mal entendidos. Mas é preciso dominar-se a estrutura clássica da narrativa para se subvertê-la com mestria: em “O Grande Lebowski” tudo se faz a partir de coisa nenhuma.
“A história e os personagens são fortíssimos”, concorda o músico Nick Suave, mais um fã descarado. “E o culto, para mim, é similar ao do Seinfeld pelas mesmas razões: vejo um pouco de mim em cada um dos personagens. Quem vê a vida como algo sem sentido e completamente absurdo sente uma ligação forte a este tipo de cenas porque nos tranquiliza, mete um pouco de ordem nisto”.
Muitos críticos consideraram-no uma salganhada aleatória — os mesmos que, anos depois, acabariam por se render ao culto. Porque, uma vez entendido o papel secundário da trama policial, se descobre que o verdadeiro deleite está nos diálogos e nas idiossincrasias das personagens: além de The Dude, Walter (John Goodman), o veterano do Vietname demasiado voluntarioso; Donny (Steve Buscemi), cuja função é não perceber nada do que está a passar (quem nunca?); Jesus (John Turturro), o messias do bowling, ou todo um gang falhado de niilistas alemães (quem lhes dera ser tão niilistas como Lebowski — se bem que essa etiqueta já lhe exigiria demasiado esforço). O tom deslaçado da narrativa é, aliás, ditado logo ao início pelo discurso de mais uma deliciosa personagem: a do narrador cowboy, que divaga e que se perde.
O jornalista Marco Vaza, apesar de dudeísta, admite que não apanhou a coisa à primeira: “Achei o filme confuso, desconexo e sem grande sentido. Não odiei. Mas só me ri francamente na cena em que eles estão a espalhar as cinzas do Donny e levam com elas na cara por causa do vento. Já conhecia os Coen e, na altura, gostava mais do “Fargo” e do “Arizona Júnior”. Não mergulhei nele logo à primeira. Só lá voltei quando saiu na Série Y e só então comecei a perceber o sentido que aquilo fazia. E só à terceira ou à quarta é que comecei a decorar diálogos e a descobrir que havia mais gente à minha volta a fazer o mesmo”.
“The Dude abides” é a última frase proferida pela personagem de Jeff Bridges, que muitas vezes fala de si na terceira pessoa para exibir orgulhosamente a alcunha que escolheu — como se, na ressaca do seu passado activista, tivesse finalmente encontrado a identidade que legitima o seu confortável abandono ideológico. À procura da definição precisa do verbo “to abide” (traduzido para “sobreviver” na legendagem portuguesa), concluímos que o filme lhe deu um contexto muito particular com um significado difícil de conter: ele vai continuar, ele vai andar por aí. Talvez possamos até flirtar com a heresia de que “ele está no meio de nós”.
Não admira, portanto, que se tenha criado um culto quase religioso, o Dudeísmo, que ao fim de 20 anos continua a juntar acólitos em encontros por todo o mundo, como é o caso do Lebowski Fest, em Portugal. O primeiro aconteceu em Setembro de 2017, no Parque José Gomes Ferreira, em Lisboa (anunciando “White Russians a metade do preço para quem vier vestido de personagem do filme” ou “bowling a ser jogado alcoolizado”) e o próximo está marcado para dia 29 deste mês, na Zibreira.
“A história de como acabámos na Zibreira é, ela própria, uma odisseia digna de um filme dos irmãos Coen”, explica João Ribeiro, um dos organizadores. “Devido a dificuldades jurídicas, acabámos por não conseguir organizar o evento em Torres Novas, como pretendíamos. Foi então que um amigo e colaborador, o Ruben Fonseca do Paintball Zibreira, sugeriu que se fizesse o festival na Zibreira. Após a divulgação inicial, acabámos por ser contactados por vários artistas de diferentes áreas a pretenderem juntar-se ao cartaz”. Por isso, este ano, a festa já extravasa a “típica Dudaria” e inclui “desfile de moda, exposição de arte, stand up, a apresentação de um livro, poesia, um live podcast e bandas como os Zanibar Aliens para alegrarem a noite. Tudo isto com entrada livre, para que a filosofia dudeísta chegue ao máximo de pessoas possível”
Jorge Monteiro, outro dos organizadores do Lebowski Fest e dudeísta certificado pelo site www.dudeism.com, explica a necessidade de se celebrar o culto: “Gosto de acreditar que o subconsciente colectivo dos dudeístas entende a necessidade urgente de existir pessoal que não precisa de muito para estar em paz, que não entra em pânico perante a adversidade e que leva as coisas na boa. São as pessoas altamente motivadas e que levam a vida muito a sério que causam grande parte dos problemas globais. Mostrem-me um gajo que passa o dia a jogar League Of Legends, a fumar ganzas e a masturbar-se na cave da avó… é um gajo que não está a causar problema algum. Até a avó viúva aprecia a companhia”.
“O Grande Lebowski” encerra o segredo para a paz mundial, mas nem sempre é fácil colocá-lo em prática num mundo que espera de nós algum — ultimamente, demasiado — empreendedorismo. Como admite Nick Suave, “não dá para ser o Dude. Mas o Dude ensinou-me que o caminho para o dudeísmo está a ser percorrido todos os dias. É um esforço inconsciente que começamos a fazer depois de ver “O Grande Lebowski” algumas vezes, uma viagem em direcção à boa onda — só tens de te deixar ir”.