Vindo do trabalho, tinha acabado de cumprir a rotina habitual de quem tem filhos e preparava-se para se sentar em frente ao computador para ver o correio, as notícias da noite e entregar-se a um dos principais hobbies, a escrita no seu blogue. No entanto, um email da Google por volta da meia noite acabou por alterar aquele que deveria ser apenas mais um par de horas. Em resumo, a gigante da Internet explicava que, no seguimento da intimação no caso “Sport Lisboa e Benfica, Futebol SAD vs. John Doe 1” que tinha chegado do Tribunal Central da Califórnia, poderia ser obrigada a fornecer os seus dados, nomeadamente o IP e demais identificações, caso não avançasse com uma moção de proteção para a mesma entidade.

Nunca pensou receber aquela mensagem e foram-lhe passando várias coisas pela cabeça. Até esse momento, escrever sobre desporto, nomeadamente futebol e o seu clube, o Sporting, não passava de uma mera atividade lúdica que fazia antes ou depois do “verdadeiro” trabalho. A partir dali, tudo poderia mudar. E receou que a sua identidade fosse revelada, não por saberem quem é o autor de todos aqueles textos mas por medo de sofrer pressões, ameaças ou retaliações pelo que escreve. Releu os textos que tinham sido denunciados pelo Benfica, no seu caso em específico num total de 13, fez a explicação de cada um e respondeu à Google, mesmo sabendo que isso não teria qualquer carácter “vinculativo” ou legal em relação ao que estava em causa.

“Todos eles são artigos de opinião sobre temas relevantes que têm sido discutidos largamente pelo país fora, seja nos cafés, nas redes sociais, nas rádios, nos jornais e televisões: a estratégia de tomada de poder do futebol nacional, o recurso à propaganda encapotada, as múltiplas cortesias concedidas a organismos que superintendem o desporto nacional, o apoio às claques ilegais que negam ter, por aí fora. Tal como fizeram os jornais, televisões e inúmeros blogues e contas de Twitter ou de Facebook, recorri a imagens de emails que eram do domínio público para sustentar as minhas opiniões e conclusões. Não fiz mais do que usufruir do meu direito de liberdade de expressão sobre questões de inequívoco interesse público”, salientou o “Artista do Dia” no último post publicado na sua página, depois de muitas mensagens que recebera nessa quarta-feira depois da publicação do artigo “Benfica, um grande clube que vai atrás de pequenos bloggers” no The New York Times.

Nos dias que se seguiram, o blogger foi contactando alguns advogados da Califórnia para tentar perceber as possibilidades que teria de apresentar a dita moção que poderia “congelar” essa hipótese de ver os seus dados revelados. Percebeu que, por não ser um cidadão americano e o caso ter sido apresentado no país, não poderia recorrer à primeira emenda que dá o direito a qualquer pessoa de escrever de forma anónima nem poderia beneficiar de um advogado nomeado pelos serviços de justiça americana, como também poderia acontecer. Por isso, não tinha outra alternativa que não fosse apresentar a tal moção de proteção de identidade. Podia ser aceite, podia ser recusada, mas custaria sempre muito dinheiro. O tempo para contestar passou e, agora, tem consciência que a Google deverá fornecer no limite das próximas semanas os seus dados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Não sei o que vai acontecer a partir daqui mas é normal que tenha receio de toda esta situação e das consequências que possam existir. Podem chegar ao meu trabalho, por exemplo. Todos aqueles textos em causa foram escritos tendo por base emails que estavam disponíveis ao público e muitos deles têm também recortes ou links de jornais ou revistas que falaram antes do caso”, comentou ao Observador o blogger, que não sabe se a Google já terá enviado os seus dados para o Tribunal Central da Califórnia (que, posteriormente, fará chegar à defesa do Benfica). “O blogue é um espaço pessoal que desenvolvo no meu tempo livre, para publicar as minhas opiniões pessoais, da forma mais sustentada possível, sem descontextualizar ou deturpar intencionalmente o quer que seja. Não sei quem retirou os emails ao Benfica, não sei quem os anda a disponibilizar na internet e nunca tive acesso antecipado a esses dados. Sou e sempre fui completamente independente de qualquer clube, dirigente de clube ou empresa de comunicação que trabalhe ou alguma vez tenha trabalhado para um clube”, advoga.

Google pode dar dados de blogues que publicaram emails ao Benfica após queixa no tribunal da Califórnia

“O Benfica foi vítima de um roubo e posterior divulgação da sua correspondência privada, primeiro por um canal televisivo ligado a um dos seus rivais, o FC Porto, e depois, no seguimento de uma decisão do tribunal que proibiu essa divulgação, esses emails, muitos deles distorcidos, começaram a ser publicados por blogues ligados aos clubes rivais”, defende a queixa dos encarnados, a que o Observador teve acesso e que foi também publicada pelo The New York Times, que visa cerca de 100 pessoas e que aponta para outros pontos – além dos já conhecidos violação de correspondência privada – como interferência intencional com perspetiva de vantagem económica, enriquecimento ilícito ou conspiração. Fonte oficial do Benfica recusou a ideia de haver qualquer perseguição individual a alguém, destacando que o clube e a SAD estão a defender-se de forma legítima de um ataque que envolveu o roubo de correspondência eletrónica privada entre outros crimes. “Cabe às instâncias avaliar o que é crime organizado e o que são blogues que acharam por bem utilizar correspondência roubada”, acrescentou.

Recorde-se que todo este processo em específico nasceu depois do processo movido pelo Benfica, em abril, contra um conjunto de gigantes da Internet como a Google (proprietária do “blogspot.pt”), a Cloudfire (que tem o “rgho.st”) e a Automatic Inc (dona do “wordpress”), acusadas de serem co-autoras do crime. No caso da Google, os dois blogues em causa são ambos afetos ao Sporting, o “Artista do Dia” e o “Mister do Café” – que também foi notificado pela empresa da possibilidade de fornecer os seus dados ao Tribunal Central da Califórnia. É crível que também a Automatic Inc tenha procedido da mesma forma com o “Mercado de Benfica Polvo”, alojado no “wordpress”, que tem descarregado praticamente todos os emails que chegaram a público e que já anunciou mais na sua página no dia 18. O Observador não conseguiu confirmar esta informação.

“Muita força a todas as vítimas do regime nacional-benfiquista. Este regime caduco, de índole fascista, que se alimenta do medo, da coação, do tráfico de influências, da corrupção e de outros expedientes obscuros, terá de cair, a bem ou a mal!”, escreveu o “Mercado de Benfica Polvo” em resposta ao último post do “Artista do Dia”.

Também o “Mister do Café” publicou um post sobre a temática, deixando uma explicação sobre o seu único texto que faz parte da queixa do Benfica e que tem o título “A visão do poder” sobre um alegado Powerpoint de uma reunião de quadros do clube encarnados em 2012. O blogger advoga que essa publicação foi feita a 23 de abril, cinco dias depois de ter sido divulgado no “Mercado de Benfica Polvo” e, posteriormente, por vários meios de comunicação social – com a apresentação dos alegados slides que lá estariam. “Rádios, televisões, sites e até um dos mais conhecidos blogues benfiquistas publicaram os prints pelos quais o Benfica agora me está a atacar. A 20 de abril todo o país já sabia do caso, sendo que só publiquei um post sobre essa matéria no dia 23 (…) Parece-me evidente a completa ausência de validade argumentativa do Benfica”, diz.

Benfica vai enviar para a PGR documentos internos da PJ que circulam na net desde fevereiro

“Como é óbvio, o Benfica sabe perfeitamente que não tenho nada a ver com qualquer roubo de emails e muito menos fui eu que disponibilizei os emails para consulta livre em todo o mundo. Não há nenhum crime que me possa ser imputado e eles sabem disso. Então, porque raio é que o Benfica decidiu gastar uma verdadeira pipa de massa para saber a identidade dos autores de dois blogues cuja importância é relativa? A resposta é muito simples. O Benfica não tem forma de justificar ou desmentir o conteúdo dos emails (…) Se a Google revelar as nossas identidades e o Benfica cumprir com a ameaça, eu e o Artista do Dia seremos processados. Mas neste caso o processo será dirimido em Portugal, e aqui teremos os nossos direitos intactos. Por sermos os primeiros alvos do Benfica, julgo que estamos a enfrentar algo que acarreta uma responsabilidade adicional. Se nos vergarmos perante a intimidação, a coação e a ameaça, estaremos a caminhar no sentido oposto daquilo que deve ser uma sociedade democrática, livre e plural. Bem sei que os meus meios de resposta não têm comparação com os do Benfica, mas enquanto cidadão não posso, nem vou aceitar este atentado civilizacional sem dar luta”, escreveu.

De referir que, no final do ano passado, o Benfica tinha anunciado em comunicado que, “para todos os efeitos legais”, iria “responsabilizar todos aqueles que continuam a difundir informação confidencial sua e, ainda, aqueles que, através das hiperligações já publicadas ou outras que venham a ser publicadas, obtenham e acedam ao conteúdo dessa informação confidencial. Trata-se de um ataque não apenas ao Sport Lisboa e Benfica, mas também ao Estado de Direito Democrático, que não pode passar em claro a nenhuma autoridade pública, seja ao nível federativo, governamental ou judiciário”.

“O Sport Lisboa e Benfica e a Sport Lisboa e Benfica, SAD têm vindo a ser alvo de múltiplas ofensas ao seu bom-nome e ao seu prestígio, através de imputações falsas que afetam, de modo grave, o crédito e a consideração que lhes são devidos, enquanto projeto social, cultural, desportivo e económico sustentável, de dimensão internacional. Tais ofensas consubstanciam a prática de ilícito criminal previsto e punido pela lei portuguesa e o modo continuado e anunciado como foram sendo feitas não só demonstra o carácter doloso das mesmas, como afasta da sua origem qualquer preocupação com o interesse público. Antes, revela a intenção torpe de expor, publicamente, informação confidencial e dados pessoais de terceiros e, ainda, de condicionar, não apenas o normal desenrolar da competição desportiva, mas também e, mais grave, a atuação firme e eficaz das próprias autoridades policiais e judiciais (…) O total sentimento de impunidade culminou no recente ataque criminoso, anónimo e cobarde, concretizado na divulgação através das redes sociais de dados pessoais e institucionais do Sport Lisboa e Benfica, desde endereços eletrónicos e respetivas palavras passe, até ao conteúdo de mensagens de correio eletrónico trocadas entre funcionários”, acrescentou o comunicado emitido a 18 de dezembro.

Em março, o Benfica também anunciou na BTV que já iria avançar com queixas-crime contra os blogues “Mercado de Benfica Polvo” e “Mister do Café”. No primeiro caso, a justificação foi a contínua publicação de correspondência privada dos encarnados e não só – poucos dias antes, já depois de ter revelado o alegado documento interno da Polícia Judiciária onde havia uma alerta para a possibilidade de existência de uma “toupeira” no Campus da Justiça, tinha colocado um alegado despacho da operação e-toupeira; no segundo, por haver “fortes indícios” de ligação do blogue ao Sporting, através de uma empresa que trabalhava com o clube verde e branco em outsourcing (que viria a negar essa associação).

Mais recentemente, no último mês, o clube encarnado abordou por três vias e de outras tantas formas a questão dos emails, com a convicção de que muito em breve serão conhecidas mais novidades sobre o caso.

Benfica processa a Google após furto de documentos secretos

“A acreditar no que foi publicado, ficámos a saber a identidade do hacker que roubou os emails ao Benfica e foi o diretor do FC Porto que exibiu o produto desse roubo. Essa informação roubada veio a ser partilhada em blogues afetos ao Sporting, muito provavelmente com a conivência da anterior direção do clube. Alguém acredita que um hacker iria oferecer informação a troco de nada?”, destacou em conferência, a 13 de setembro (dia em que a revista Sábado trouxe um trabalho sobre o alegado principal suspeito de ter roubado os emails), Varandas Fernandes, vice-presidente dos encarnados, salientando ainda as duas decisões concluídas no Tribunal Administrativo do Porto e na ERC “que dão razão ao Benfica”.

No dia seguinte, a conta do Twitter Benfica Press, destinada à comunicação social, abordou os últimos desenvolvimentos com uma publicação. “Aproxima-se a descoberta do circuito do dinheiro e quem pagou ao hacker que roubou o Benfica. Todos sabemos quem exibiu o produto desse roubo em que a célebre reunião do Altis foi a face visível do crime organizado”, escreveu, recordando um encontro entre diretores de comunicação do FC Porto e do Sporting em Lisboa.

Por fim, foi Luís Filipe Vieira, presidente das águias, a abordar o tema no discurso da última Assembleia Geral do clube, no final de setembro, que contou com mais de 900 associados. “Vivemos um momento sem precedentes na nossa história, fruto de vários ataques, uns de origem criminosa e outros motivados pela necessidade de afirmação pessoal. Se as motivações são claras, a origem também o é. Hoje sabemos quem esteve por trás do roubo da nossa correspondência privada e quem a andou a exibir. E, continuando a confiar na justiça, queremos acreditar que toda a tramoia, montada por aquela aliança, será posta a nu e os seus responsáveis, atuais ou passados, devidamente punidos. Este é o tempo da Justiça. Não apenas para o Benfica, mas para todos. E quem tiver de cair, que caia. Limpemos o futebol daquilo que ele não precisa: lama, difamação e descrédito. Limpemos o futebol de mais campanhas negras como única forma de esconder descalabros financeiros e desportivos. Limpemos o futebol das velhas práticas de ameaças e pressões sobre tudo e todos, para condicionar quem está dentro do campo. Tentaram criar a imagem falsa de que o Benfica dominava todas as estruturas do futebol português”, frisou.

Depois da publicação do artigo do The New York Times, que foi amplamente partilhado nas redes sociais, as reações foram-se multiplicando. Umas a favor da posição do Benfica, criticando aqueles que escrevem sem dar a cara e que sabiam estar a utilizar correspondência que tinha sido obtida de forma ilegal, outras em defesa dos blogues em causa, apontando para o facto de toda a informação ser do domínio de todos – em relação a todas as páginas menos o “Mercado de Benfica Polvo”, que configura uma situação diferente – e relevante enquanto interesse público. Fala-se, sobretudo, no direito à liberdade de expressão e dos seus respetivos limites. E esse será um grande ponto de reflexão paralelo a todos os processos relacionados com os emails.