O antigo diretor do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) Jorge Silva Carvalho, que foi condenado por violação de segredo de Estado, abuso de poder e acesso ilegítimo a dados no âmbito do “Caso das Secretas”, admite num livro de memórias, a publicar na próxima semana, que os serviços secretos portugueses roubaram dezenas de fichas de militantes do Partido Socialista Revolucionário (PSR), partido liderado por Francisco Louçã, que em 1999 esteve na origem do Bloco de Esquerda.

O livro “Ao Serviço de Portugal” (Editora Contraponto) chega às livrarias na próxima semana, mas a revista Sábado publicou esta quinta-feira alguns excertos que contam este e outros episódios, recordando pressões no caso Freeport, descrevendo detalhes da famosa “Operação Santola”, revelando pormenores das operações de vigilância levadas a cabo pelas secretas em Portugal e mostrando ainda as guerras internas dos serviços secretos e a influência da maçonaria na organização.

Pressões políticas: do caso Freeport à Argélia

Sublinhando que muitos dos relatos incluídos no livro têm de ser assumidos “como ficção”, Silva Carvalho — que ficaria conhecido como super-espião — escreve grande parte dos textos na forma condicional ou hipotética. Mas alguns relatos são memórias puras. Por exemplo, no caso Freeport, que envolvia alegados crimes de corrupção no licenciamento daquele centro comercial em Alcochete e que atingiam o primeiro-ministro José Sócrates (que havia sido o ministro do Ambiente responsável pela concessão da licença).

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Na altura, as autoridades portuguesas pediram às autoridades britânicas dados sobre a empresa e Silva Carvalho terá sido pressionado a intervir. “Um dia, fui chamado superiormente e a conversa começou de forma melíflua. ‘Já viu isto? Os ingleses estão a enviar para cá informação da polícia sobre o nosso primeiro-ministro, você dá-se bem com o MI6, eh pá, você tem que dizer aos ingleses que isto não é apenas cooperação, que estão a falar do primeiro-ministro de Portugal, e que quando fazem estas coisas estão a afetar a relação entre as duas potências’”, lê-se num excerto do livro divulgado pela Sábado.

“Respondi que não ia fazer rigorosamente nada. (…) Percebi que, às vezes, as pessoas em funções não conseguiam ser imunes à pressão política. Júlio Pereira (…) foi-me desiludindo do ponto de vista profissional e pessoal”, continua, referindo-se ao antigo secretário-geral do Sistema de Informações, que ocupou aquele cargo entre 2005 e 2007.

As pressões envolvendo casos aos quais está ligado o nome de Sócrates não terão ficado por ali. Noutro episódio relatado no livro, Silva Carvalho lembra “uma empresa portuguesa a construir uma instalação petrolífera” na Argélia, mas sem mencionar o nome da empresa. Segundo o relato citado pela revista Sábado, os trabalhadores da empresa deslocavam-se frequentemente para longe da obra para se divertirem, estando “alheios ao risco que podiam correr, nomeadamente raptos pela Al-Qaeda do Magrebe”.

Ora, o espião português terá considerado que bastava avisar a empresa para os riscos e que tudo ficaria resolvido, mas Júlio Pereira discordou. “Não está nada resolvido, temos de mandar lá alguém, pode haver alguma coisa (…) Não se esqueça que esta é a empresa do nosso Primeiro”, lê-se no livro, de acordo com outro excerto publicado na Sábado, que explica que poderá tratar-se de uma empresa do Grupo Lena.

Invasão da sede do PSR: entre a 1h e as 4h para roubar fichas de miltantes

No livro, Silva Carvalho relata também, embora de forma hipotética, como os serviços secretos terão entrado na sede do PSR de Francisco Louçã para retirar e fotocopiar as fichas dos militantes. “Ninguém naquele tribunal iria acreditar em mim se lhes tivesse dito, por mera hipótese, que aos 27 anos teria entrado na sede de um partido político português de extrema-esquerda, para retirar as fichas de inscrição dos militantes”, escreve o ex-espião no livro, citado pela Sábado.

Super espião condenado a quatro anos e meio de prisão

“Esse partido assumia-se publicamente como simpatizante da ETA e os seus membros participariam em pequenas manifestações favoráveis à organização terrorista, em frente à embaixada de Espanha”, justifica. Por isso, o SIS terá levado a cabo uma operação entre a 1h e as 4h da manhã, roubando as fichas dos militantes, levando-as para fotocopiar, e devolvendo tudo antes de o sol se levantar.

Questionado pela revista Sábado sobre esta operação, Francisco Louçã classificou a história como “uma fábula”, uma vez que “não havia fichas na sede do PNR”, mas admitiu que a operação possa ter existido e disse ser “certo que se trata de um crime”. “O ridículo mata mais do que qualquer outra coisa”, comentou. “Podem ter encontrado as listas de candidatos às eleições. Isso sim estava lá. Mas para ter acesso a essas listas, bastava ir ao balcão do tribunal e pedir uma cópia. Essas listas eram conhecidas e são públicas”, disse ainda.

Esta terá sido apenas uma de muitas operações de vigilância que os espiões portugueses levam a cabo — Silva Carvalho chegou a dizer que 90% do modus operandi dos serviços secretos de Portugal passa por métodos ilegais. E, no livro, conta alguns exemplos.

“Ninguém acreditaria que durante anos vários hotéis e restaurantes de Lisboa teriam escutas ambientais regularmente instaladas e o serviço alugaria frequentemente os chamados ‘quartos contíguos’ nesses hotéis”, descreve.

É comum a entrada dos agentes em quartos de hotel para fotografar os pertences de alvos estrangeiros e copiar documentos, colocando inclusivamente escutas nos quartos. Nas operações no exterior, são usadas câmaras disfarçadas em extintores no interior de carrinhas ou nas antenas de carros. Na sede, há um conjunto de disfarces e fardas que permitem infiltrar agentes em praticamente todo o lado. E ainda contactos frequentes com pedreiros e fabricantes de chaves para entrar em qualquer edifício.

Tudo isto é ilegal, naturalmente. Mas, “desde que não assumisse níveis críticos de gravidade que pudessem expor a própria atividade do serviço, os processos ou os meios empregues eram relativamente indiferentes”, argumenta Silva Carvalho. O ex-super-espião lembra ainda as fontes pagas que os serviços secretos tinham em vários setores da sociedade: jornalistas, juízes, magistrados do Ministério Público e militares, todos pagos pelas informações.

“Operação Santola” terá tido apoio de Israel

Nos excertos do livro, citados pela Sábado, Silva Carvalho levanta também o véu sobre a famosa “Operação Santola”, que apareceu referida no julgamento do Caso das Secretas e cujo conhecimento seria fundamental para conhecer os métodos daqueles profissionais. Nunca se chegou a saber bem de que se tratava, mas agora Silva Carvalho escreve que “teria sido planeada, executada nos seus atos preparatórios e posteriormente suspensa uma operação em colaboração com um serviço estrangeiro, operação essa que teria implicado a entrada numa infraestrutura crítica nacional, exatamente no local onde termina uma rede de transmissões internacionais”.

A Sábado aponta que essa infraestrutura seria o Centro de Cabos Submarinos de Sesimbra, onde estão ligados vários cabos de fibra ótica que ligam Portugal ao resto do mundo. A operação teria sido feita com o apoio de Israel e com o objetivo de intercetar comunicações da Arábia Saudita, do Irão, de Angola e de Moçambique, mas acabou por não avançar.

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Entre as revelações publicada no livro, está também a colaboração de empresas como a Ongoing, de Nuno Vasconcelos, com os serviços. “Consideremos a hipótese de a Ongoing se ter disponibilizado para ajudar os serviços em situações que os mesmos pediam para colocar alguém num mercado onde ela estava presente. (…) Quando funcionários da Ongoing participavam em reuniões no Brasil, nos centros de decisão estratégicos, e depois nos vinham contar o que se passava, mesmo sendo uma visão parcial, era claramente interessante para os serviços”, lê-se num excerto citado pela Sábado. O próprio Nuno Vasconcelos terá ido “mais de dez vezes” às instalações do SIS para discutir assuntos relacionados com o Brasil.

Guerras internas: “Toda a gente gozava com ela”

O ex-espião conta também alguns episódios relacionados com a guerra de poder no interior dos serviços secretos, deixando críticas a Júlio Pereira — que acusa de ter preferido dedicar-se à produção literária em vez de gerir ativamente o serviço — e a Durão Barroso, que acusa de ter escolhido para diretora-geral do SIS a juíza Margarida Blasco “numa lógica de nomeação pessoal”.

“Toda a gente gozava com ela. Mesmo os que fingiam que estavam próximos gozavam com ela e manipulavam-na. Era uma senhora descontraída, ligeira, simpática, preocupada com os vestidos e as viagens internacionais, e era a directora-geral do SIS”, recorda.

No livro, Silva Carvalho relata ainda pressões para recrutar para os serviços secretos membros da maçonaria, nomeadamente para contratar a ex-mulher de António Reis, socialista e grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, e deixa críticas ao atual diretor-adjunto do SIS, Gil Vicente, cuja nomeação considera ser “mais uma nomeação ‘política’ do que outra coisa”.

Em 2016, Jorge Silva Carvalho foi condenado a quatro anos e meio de prisão no âmbito do Caso das Secretas, tendo ficado a pena suspensa mediante o pagamento de duas indemnizações: 15 mil euros ao jornalista Nuno Simas e 10 mil euros a Francisco Pinto Balsemão. Ficou provado que Silva Carvalho acedeu aos dados telefónicos de Simas, então jornalista do Público, depois de ele ter publicado uma notícia relativa a um certo mal estar no interior dos serviços secretos — estando aqui em causa o crime de acesso ilegítimo a base de dados. Já no que diz respeito a Francisco Pinto Balsemão, Silva Carvalho pediu a João da Silva Luís, à época diretor operacional do SIED, para fazer um relatório sobre o empresário, ficando provado o crime de devassa da vida privada.