Marcelo Rebelo de Sousa disse que não iria comentar o livro do seu antecessor “até ao fim da vida”, e não marcou presença no evento de apresentação — estava no Porto. António Costa disse que não comentava as páginas em que é descrito como um “artista da arte de nunca dizer não” por “uma questão sentido de Estado”, e também não apareceu. Quem apareceu no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian foi outro dos personagens da história, talvez mesmo o protagonista: Pedro Passos Coelho, que comentou, de facto, as páginas do ex-Presidente mesmo depois de ter dito que não tinha ido ali para o fazer — até porque está ele próprio a escrever as suas memórias sobre o mesmo período, e essas sim, serão a resposta aos factos relatados por Cavaco.
“As informações que eu possa juntar e o que eu possa dizer, e terei muito para dizer e para juntar, podem dar um contexto mais alargado do entendimento do que se passou nestes anos. Esta é uma contribuição muitíssimo relevante para esse entendimento, não diz tudo, mas o que diz é importante para que se perceba o que se passou, mesmo quando muitas das coisas resultam de informações que o chefe de Governo [neste caso, o próprio Passos Coelho] na altura lhe prestou”. Foi assim que Passos Coelho comentou, depois de ter dito que não comentava, o segundo volume das memórias do ex-Presidente da República, que diz respeito a todo o período da sua governação. Passos até tinha começado por dizer que não ia fazer declarações aos jornalistas — “não vim cá para isso” –, que tinha ido apenas pela “estima e admiração” que tem pelo “dr. Cavaco Silva”, com quem tratou de perto de muitos assuntos importantes dos quais guarda “uma memória muito viva”…mas depois não resistiu.
Sobre o seu livro de memórias, que será certamente sobre o mesmo período da história, Passos não adianta quando estará pronto, mas promete mais detalhes que irão complementar os relatos feitos pelo ex-Presidente da República. “Nada corre atrás de mim, não tenho uma data fixada, mas posso dizer que ainda não acabei de o escrever”, disse aos jornalistas à saída do evento onde Cavaco é que era a estrela — embora não parecesse.
Cavaco não receia desmentidos. “Nunca receei ser submetido ao exame da consistência das posições assumidas”
Passos Coelho parecia o protagonista do evento: chegou pontualmente à hora marcada, às 18h, mas chegou tão cedo que as portas ainda nem estavam abertas. Resultado? Teve de ficar a fazer sala, enquanto era abordado por antigos colaboradores e diversas personalidades, mais ou menos anónimas, ora para uma fotografia, ora para dois dedos de conversa. Quando as portas abriram e o verdadeiro protagonista, o autor da obra, chegou acompanhado da mulher, Maria Cavaco Silva, e dos netos, o nome de Passos Coelho continuou a ser um dos mais ouvidos, tanto durante a intervenção de Cavaco como de Leonor Beleza, encarregue da apresentação. Os elogios foram rasgados.
“Os partidos que compõem coligações geralmente procuram demarcar-se imediatamente um do outro — mas Passos Coelho e Paulo Portas souberam encontrar o caminho do superior interesse nacional”, disse Cavaco Silva durante a sua intervenção, sublinhando que “pode-se discordar de algumas opções [tomadas pelo governo PSD/CDS]”, sendo que ele próprio discordou “várias vezes”, mas “o certo é que o país evitou um segundo resgate e encontrou uma trajetória de crescimento e de criação de emprego”.
Mérito de Passos e Portas, disse — com Passos sentado na primeira fila, e Portas ausente –, mas também dele próprio, que exerceu a sua magistratura de influência. Segundo Cavaco, os “diálogos diretos com o primeiro-ministro são os meios mais eficazes que o PR tem constitucionalmente ao seu dispor para influenciar”, e foi sobretudo aí que ele próprio exerceu a sua “magistratura de influência”. “O governo de coligação passou por crises políticas graves, mas aguentou-se e completou a legislatura — foi inclusive a primeira coligação governativa a completar o mandato de quatro anos”, sublinhou.
Sobre António Costa, com quem o Presidente Cavaco teve apenas 11 reuniões de quinta-feira, o ex-Presidente lembrou como foi difícil o “parto da geringonça”. Cavaco precisou de fazer “23 reuniões”, desde reuniões com os partidos, aos parceiros sociais, passando pelos principais bancos e por sete economistas da sua confiança, “antes de tomar a decisão de empossar” António Costa como líder do governo. Mas nem isso bastou: “exigi ao líder do PS um esclarecimento por escrito de várias questões. O meu objetivo era responsabilizar politicamente o futuro primeiro-ministro relativamente a orientações estratégicas que eu considerava importantes para minorar os riscos associados aquela solução governativa”, lembra, referindo-se às posições de BE, PCP e PEV sobre questões do euro, Europa ou Nato.
Além das dúvidas assumidas que a geringonça lhe suscitou, Cavaco deixou ainda uma indireta ao protagonista do seu anterior livro de memórias (o primeiro volume de “Quinta-feira e outros dias”), José Sócrates — embora o seu nome não tenha sido pronunciado. Disse Cavaco que o segundo volume era dedicado aos seus cinco netos, e a toda a geração que representam, para que retenham os “ensinamentos e para que não permitam que os governos voltem a deixar cair Portugal numa situação de bancarrota”.
Para Cavaco, as memórias que agora acaba de publicar, com a publicação do segundo volume “Quinta-feira e outros dias — da coligação à geringonça”, servem apenas para “prestar contas aos portugueses”. É assim que responde a quem o critica por revelar conversas institucionais privadas. No entender do ex-Presidente, prestar contas “é um imperativo de quem exerce altos cargos públicos”. Diz que sempre o fez, tanto quando foi ministro das Finanças, como primeiro-ministro, e agora como Presidente da República: “são 23 publicações no total”. Tudo porque, explica, “nunca receei ser submetido ao exame da consistência intemporal das posições assumidas”. Que é como quem diz: Cavaco não receia desmentidos.
Leonor Beleza, que fez a apresentação da obra assumindo não ter “qualquer independência”, porque sempre apoiou Cavaco Silva desde a primeira hora, corroborou as boas intenções do ex-Presidente. “Não está a candidatar-se a nada, está mesmo a explicar aquilo que fez — e diz mesmo aquilo que pensa”, afirmou.
Passos Coelho promete seguir a mesma linha e prestar contas daquele que é descrito como um dos períodos “mais difíceis da nossa democracia” através de idêntico um livro de memórias. Portanto, “to be continued…”