Um dia, Henry Ford quis criar um automóvel que qualquer consumidor pudesse ter: “vou construir um carro para o grande público. Será grande o suficiente para a família, mas pequeno o suficiente para um indivíduo o poder conduzir e cuidar dele. Será construído com os melhores materiais, pelos melhores homens, com os projetos mais simples que a engenharia moderna pode conceber. Mas será tão baixo em preço que nenhum homem com um bom salário será incapaz de possuir um. E desfrutará com a família a bênção das horas de lazer nos grandes espaços abertos criados por Deus”.

Um dia, numa reunião com agentes comerciais, Ford anunciou uma parte crucial da fórmula que garantia que o negócio seria viável: “cada consumidor pode ter um carro da cor que quiser, desde que essa cor seja o preto”. A fórmula mostrou-se bem sucedida. O destino dos carros fora da fábrica é que saiu do controlo de Henry Ford: houve até um padre que modificou o automóvel para que ele se parecesse com uma igreja ambulante e poder celebrar missas nas aldeias mais remotas dos Estados Unidos.

O que tem a história do modelo de negócios de Henry Ford a ver com inovação na saúde? Foi ela que inspirou a filosofia por detrás da Patient Innovation, uma organização sem fins lucrativos que esteve na conferência Healthcare Innovation 2018 para falar sobre as ferramentas mais vanguardistas que estão a nascer na área dos cuidados de saúde. O evento aconteceu a 12 de outubro na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa e foi criado por essa universidade e pela Healthcare City, uma incubadora de startups da área da saúde.

A Patient Innovation é uma evolução de um projeto de investigação académica que tinha como objetivo perceber como é que um paciente ou o cuidador dele consegue criar alternativas inovadoras para resolver um problema de saúde ou mitigar as suas consequências. Esse projeto continua a evoluir e, numa sondagem telefónica feita a 500 pacientes ou cuidadores de pessoas com doenças raras, a Patient Innovation descobriu que 8% delas tinham em mente soluções completamente novas que não só seriam úteis para si como, também, para outros com problemas parecidos.

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Mas havia dois problemas, explicou uma representante da organização no Healthcare Innovation 2018: um económico e outro psicológico. Quanto ao primeiro, o problema surge porque, “na terminologia económica, as doenças raras são consideradas mercados de nicho, por isso não dão lucro e as farmacêuticas não costumam investir em arranjar soluções para elas. Existem mais doente do que produtores“, começa por dizer. O lado bom é que “há muitas ideias por concretizar” e, ainda por cima, “os doentes são quem lida com a sua situação todos os dias, por isso são muitas vezes os que vão ter melhor conceções de como a resolver”.

O segundo problema é que raramente essas ideias são partilhadas com os médicos ou com outros profissionais da saúde. Na apresentação da Patient Innovation no Healthcare Innovation 2018, a representante da organizações explicou que “as pessoas têm vergonha que os médicos lhes digam que são loucas” ou, então, julgam que já alguém terá pensado no mesmo que elas. É por isso que a Patient Innovation se certifica que, quando sabe destas inovações, ela são depois disponibilizadas numa página da Internet em que outros pacientes poderão encontrar possíveis soluções para os seus problemas.

Uma história de mangueiras e piratas

Um desses casos é o do britânico Tal Golesworthy, cuja aorta, a maior e mais importante artéria do sistema circulatório do corpo humano, começou a perder rigidez e a alargar. Quando foi ao médico, ele fez-lhe um diagnóstico de Síndrome de Marfan — caracterizada por provocar órgãos anormalmente longos — e disse-lhe que a única alternativa era submeter Tal a uma cirurgia de peito aberto que duraria oito horas e que o tornaria dependente de anti-coagulantes para o resto da vida.

Ora, Tal Golesworthy não queria abdicar da liberdade que tinha. Ele é um engenheiro que pertence a uma banda de heavy metal e que gosta de ter uma vida muito ativa. Um dia, estava ele em casa a pensar no problema que tinha, quando reparou na mangueira que tinha no jardim: “ele lembrou-se que, quando as mangueiras começam a perder rigidez, ele nunca ia comprar uma nova. Em vez disso pegava em fita cola e enrolava-a até que ela voltasse a parecer rija o suficiente. E pensou: ‘Porque é que eu não faço a mesma coisa com a minha aorta?‘”.

Quando Tal partilhou essa ideia, o médico “achou uma excelente ideia”, contou a representante da empresa: “o médico disse-lhe: ‘a comparação com a mangueira pode não fazer muito sentido, mas podemos chegar a uma ideia que possa ser complementada’. Foi assim que se desenvolveu o primeiro suporte aórtico personalizado, feito especificamente para servir na aorta de cada paciente”.

Tudo isto aconteceu em 1992, mas só há cinco é que as avaliações médicas terminaram e Tal Golesworthy se tornou no primeiro paciente a receber esse suporte com sucesso. Mas só este ano é que foi aprovado e registado; e já foi apresentado como solução para mais de 100 pessoas.

Outro caso contado pela Patient Innovation é o de Hugh Herr, um montanhista profissional norte-americano que desistiu dos estudos para se dedicar a este desporto a tempo inteiro ainda antes de terminar o ensino secundário. Hugh Herr teve um acidente, teve de ser amputado e perdeu as duas pernas. “Depois de muita frustração e isolamento, ele começou a tentar criar as próprias próteses. Como não tinha muito material e aquele que tinha não era sofisticado, usou madeira e fez pernas de pau como as que vemos nos filmes de piratas”, explica a Patient Innovation.

De acordo com a representante da organização, já com as pernas de madeira, Hugh Herr adaptava o tamanho delas ao estado de espírito com que acordava: quando estava triste ou frustrado aumentava o tamanho da prótese e quando estava mais contente, diminuía o tamanho. Foi assim que Hugh Herr ganhou a atenção dos investigadores, que o convidaram para liderar a equipa que viria a construir a primeira prótese biónica. Agora é diretor de um dos grupos mais avançados na área das próteses biónicas.

O terceiro caso da Patient Innovation é o de Amit Goffe, um engenheiro que ficou tetraplégico e dependente de uma cadeiras de rodas. “No caso dele, o que lhe fazia mais confusão era que os utilizadores de cadeiras de rodas não podiam olhar nos olhos das outras pessoas. A cadeira de rodas já evoluiu em várias dimensões, mas nunca permitiu a um paraplégico estar de pé a olhar nos olhos de outra pessoa. Então, para ele, o único objetivo era esse”, conta a representante da Patient Innovation.

Amit Goffe criou, então, o primeiro exoesqueleto robótico que permitia a pessoas com deficiências limitativas das pernas ficarem de pé, mesmo sabendo que ele, sendo tetraplégico, nunca poderia usufruir da sua própria invenção: “Ele não tem força suficiente de braços para poder usar a sua própria solução”, explica a Patient Innovation. Mas nem por isso se ficou por aí: mais tarde, com o sucesso comercial desse exoesqueleto robótico, criou “uma espécie de segway” que aumentava o movimento das pessoas debilitadas.

A Patient Innovation também apresentou o caso de Michael Seres, um jornalista que com dez anos foi diagnosticado com Doença de Crohn, um problema que causa inflamações em todo o sistema digestivo. Ao fim de várias cirurgias, Michael ficou dependente de um saco coletor para ostomia: todos os resíduos intestinais de Michael eram encaminhados para o interior do saco que andava com ele para todo o lado.

Ainda no hospital, Michael Seres apercebeu-se de um grande problema: quando saísse dali e voltasse a frequentar espaços públicos teria de estar constantemente a retirar o saco para verificar se estava cheio. Isso seria um grande incómodo, principalmente porque quando pediu soluções aos médicos eles disseram que Michael não teria alternativa senão ir de tempos a tempos à casa de banho só para fazer essa leitura.

Se não havia solução até ali, Michael Seres decidiu que iria inventar uma. Começou a ver vídeos no YouTube para saber como podia modificar sensores de pressão e de volume para que, quando o saco estivesse cheio, esses sensores enviassem uma mensagem para o telemóvel para o avisar. Foi assim que construiu o primeiro sensor para sacos de ostomia capaz de mandar alertas conforme a leitura que fiz deles. Neste momento, o sensor e a aplicação a ele relacionado avisa da percentagem de volume ainda disponível no saco e de quanto tempo ele ainda pode durar.

A invenção que mudou a vida de Nuno

Tudo começou em quando Ivan Owen, um artista especialista em impressões tridimensionais, publicou um vídeo no YouTube em que mostra a criação de uma mão mecânica. O vídeo deu a volta ao mundo e chegou ao conhecimento de Richard Van As, um carpinteiro sul-africano que tinha perdido quatro dedos da mão direita por causa de um acidente de trabalho. Richard não tinha direito para uma prótese porque ela custaria milhões de dólares. Por isso, quando percebei que Ivan Owen conhecia uma solução mais barata, contactou-o. Agora tem uma mão nova.

Ivan Owen e Richard As trabalharam juntos ao longo de várias semanas, sempre através de videochamadas pelo Skype e de troca de mensagens por e-mail. De um lado, Ivan recuperou a experiência que já tinha com mãos mecânicas para criar uma solução personalizada para o carpinteiro; e, do outro, Richard esforçava-se para explicar a Ivan as necessidades que tinha enquanto carpinteiro.

Só quando Ivan construiu o último protótipo de uma mão é que se encontrou com Richard As na África do Sul: “o resultado foi Robohand, um conjunto de dedos mecânicos termoplásticos impressos em 3D que abrem e fecham para agarrar as coisas com base no movimento do pulso. Quando o pulso se dobra e contrai, os cabos que prendem os dedos à estrutura da base fazem com que eles se curvem. Quase todas as partes de um Robohand são impressas em 3D”, explica a Patient Innovation.

Robohand, como foi batizada a mão mecânica, foi inspirada na anatomia das patas de caranguejo e dos dedos humanos para obter a estrutura básica dos músculos e tendões, diz Ivan Owen. Enquanto esteve na África do Sul a testar essa invenção, Ivan e Richard As perceberam como aquela mão podia ajudar muito mais gente: a mãe de um bebé que nasceu sem uma das mãos pediu aos dois que criassem uma mão para a criança.

Em Portugal também havia uma criança a precisar da ajuda dos dois. Nuno tem sete anos e precisava de uma mão, por isso a Patient Innovation pediu uma solução personalizada a Ivan Owen: “O rapaz também ajudou na produção do gadgets, costurando a mão de impressão 3D com linha de pesca. Assim que ele recebeu a nova mão, imediatamente começou a agarrar objetos sem dificuldades”, recorda a empresa.

Quando os doentes e familiares inventam soluções que a medicina não dá