O movimento que repudia o futebol moderno não é novo e tem mil expressões: das claques italianas na década de 2000 às torcidas brasileiras no pós-Mundial, da vertente mais organizada àquela que é puramente orgânica, como os amigos que se reúnem em volta de um porco no espeto e alguns barris de cerveja. O “ódio ao futebol moderno” não é novo mas é evidente que está a ganhar adeptos.

O futebol moderno tem assentos e bandeirinhas de plástico, tem a obrigação de comprar todo e qualquer produto de merchandising, mesmo que seja um preservativo à campeão, tem clientes, mais do que sócios. O futebol moderno, que tem vindo a ser repudiado por aquilo que ainda é uma franja dos adeptos, tem jogos ao domingo à noite e bancadas vazias todo o santo dia. Ou noite. O futebol moderno e as suas perigosas SAD — ou os seus constituintes — mataram clubes históricos como o Atlético, o Estrela da Amadora, Os Belenenses, entre outros. Nos últimos tempos, temos assistido ao renascimento de alguns deles mas o processo é garantidamente moroso. Porém, com este renascer têm sido várias as pessoas que descobriram que a primeira divisão ou dinheiro não é tudo.

O futebol moderno movimenta mais dinheiro do que nunca, e com ele vêm os interesses obscuros e as vitórias questionáveis. E, acreditem, tudo se questiona. Os programas de domingo, segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado à noite questionam tudo. Frame a frame, tudo se analisa, menos a bola. Saudosos tempos dos golos do Domingo Desportivo.

Memória. Bola é memória. As que temos de pequenos e as que criamos entre amigos numa roulotte ou no café do bairro. O futebol esparramado no sofá de casa não cria memórias e sem memórias não há futuro. Voltemos então aos estádios, às roulottes e aos cafés do bairro, um outro mundo ainda é possível.

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Há 20 dias, depois de um jogo grande da liga portuguesa, num bate bolas entre amigos surgiu a ideia: e que tal juntarmo-nos e recriarmos o ambiente da Taça de Portugal, paradigma maior da paixão pelo futebol e tudo o que de bonito o envolve? Uma ida ao Jamor com tudo a que se tem direito: porco no espeto, cerveja, amigos e conversa boa. Tentámos ir mais além: sem plásticos e sem bilhetes para o jogo. Se a parte ambiental explica-se por si, a vertente desportiva não gerou tanto consenso. O que é mais importante: o apoio ao clube ou marcar uma posição contra maus preços, más horas, mau amor dado aos adeptos? Parte de nós iria ao jogo, outra ficaria de rádio na mão ou olho na televisão.

O dia amanheceu bonito mas frio. E ventoso. Quem já esteve no Jamor sabe que o sítio pode ser bem desagradável. Teria de se compensar a meteorologia com o calor humano e as cervejas. As memórias fazem-se de histórias inusitadas, como o velho gerador que decidiu morrer, o gerador novo que decidiu não se ligar e a extensão elétrica que vinha diretamente de uma das roulottes ali perto. Havia eletricidade, havia porco (duas horas depois). Partilharam-se lembranças e relatos emocionantes, ouviu-se a história daqueles que fazem 250 kms todos os jogos para ver o seu clube. O amor ao clube é coisa de cada um, mas também se faz de partilhas (e que bom que era aquele queijo da Covilhã).

A noite e a chuva chegaram pouco antes do jogo, mas nem assim os amantes do porco abandonaram a mata do Jamor, ouvindo-se os gritos de “mil novecentos e porco” durante largos minutos. Nas portas do estádio, os adeptos acumulavam-se em mais uma entrada caótica, como sempre naquele estádio, diga-se. A liga portuguesa fala em futebol com talento e amor dos adeptos, mas as condições da maior parte dos estádios continuam a ser desesperantes para quem ainda arrisca sair do sofá e ver tantos jogos mal jogados.

Durante o jogo, foram largas as dezenas de adeptos que ficaram nas roulottes e entre todos eles havia uma certeza: tinha sido uma tarde muito especial e que era em dias como estes que a frase “o jogo mais do que o resultado” fazia mais sentido. O porco no Jamor não tem clube, nem cor, mas é, claramente, uma das expressões possíveis do que é amar o futebol com os amigos.