No final dos anos 80, os Detroit Pistons conseguiram conquistar os dois únicos títulos da NBA após derrotarem os Los Angeles Lakers e os Portland Trail Blazers. Era uma equipa de artistas, com Isiah Thomas ou Joe Dumars, mas que ficou conhecida como os Bad Boys pelo mau feitio de outros elementos como Bill Laimbeer, Dennis Rodman ou James Edwards, que tão depressa aproveitavam o jogo interior para marcar prontos como arranjavam confusão fruto da defesa agressiva onde entroncava todo o sucesso da equipa. No meio, havia Vinnie Johnson. Não fazia parte do cinco inicial mas era sempre o primeiro a entrar. Não tinha propriamente bom feitio mas era fundamental no plano ofensivo. Estava no meio termo entre duas realidades que Chuck Daly conseguiu misturar com total sucesso. Daí que a sua alcunha fosse “Micro-ondas”. Como Solari.

Nascido em Rosário, o atual treinador interino do Real Madrid começou a jogar à bola nos Estados Unidos, quando estudava no Richard Stockton College, em Nova Jérsia. Quando voltou para a Argentina, passou pela formação do Newell’s Old Boys e pelo Renato Cesarini antes de fazer a estreia como sénior no River Plate, onde ganhou nos anos 90 torneios de Apertura e Clausura. Mudou-se no início de 1999 para a Europa, assinando pelo Atl. Madrid – nos primeiros seis meses, esteve discreto mas a equipa atingiu os seus objetivos; na temporada seguinte, foi um dos grandes destaques mas os colchoneros acabaram por descer de divisão. E foi aí que surgiu um inesperado convite do Real Madrid, saindo assim para o rival da capital.

Os merengues viviam o ano 1 da nova era dos Galácticos, que teve início com a surpreendente contratação de Figo ao Barcelona. E os nomes grandes continuaram a chegar, como Zidane, Ronaldo ou Beckham. Esta era a geração que um dia Florentino Pérez quis descrever como “a equipa dos Zidanes e dos Pavones”, central formado na Academia do clube que ascendeu em 2001 à formação principal. No fundo, o que o líder do clube defendia passava pela harmonia entre os artistas que tocavam piano e os operários que carregavam o piano (com todos os reflexos que a política tem a nível de folha salarial). Santiago Solari, que chegou ainda com 23 anos ao Santiago Bernabéu, estava no meio. Não tinha a qualidade dos Zidanes mas estava uns patamares acima dos Pavones; podia não ser titular indiscutível mas era indiscutível que era o primeiro a substituir os titulares. O El Confidencial descreve-o como o sindicalista, por ser o elemento que negociava os prémios naquela altura. Solari era, sobretudo, o “Micro-ondas” dos Galácticos. E é um pouco nessa condição que vai render esta noite Julen Lopetegui no comando técnico.

Solari celebra golo de Zidane em Camp Nou em 2002, ano em que o Real ganhou a Liga dos Campeões (Clive Brunskill/Getty Images)

Depois de sair do Real Madrid com tudo o que podia ganhar (incluindo uma Champions e dois Campeonatos), em 2005, Solari foi tricampeão italiano no Inter antes de terminar a carreira com passagens por San Lorenzo (Argentina), Atlante (México) e Peñarol (Uruguai). Em 2011, com 35 anos, estava na hora de arrumar as botas mas nem por isso a ligação ao futebol, que começou no berço e estava destinada a manter-se, arrefeceu. Pelo contrário.

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O pai, Eduardo, bem como os irmãos Esteban e David foram também futebolistas. O tio, Jorge, passou pelo comando de várias equipas sul-americanas – e, por ter a alcunha de “El Índio”, inspirou o nome de “El Indiecito” pelo qual Solari também era conhecido. Em paralelo, a prima casou com um dos melhores jogadores argentinos da geração anterior à sua: Fernando Redondo. Durante a carreira, foi trabalhando com alguns dos treinadores mais marcantes das últimas três décadas: Claudio Ranieri, Arrigo Sacchi, Vicente Del Bosque, Carlos Queiroz, José António Camacho, Vanderlei Luxemburgo, Roberto Mancini, Diego Simeone, José Pekerman ou Marcelo Bielsa. De todos eles aprendeu um pouco. Porque desde cedo quis aprender.

Não acho que tenha tido outra alternativa que não fosse ser treinador. Desde muito novo que não vi outra coisa que não fosse futebol. Como me defino? Como um técnico que, em vez de falar muito, prefere que os treinos falem por si”, explicou numa entrevista à revista El Gráfico.

Acabou o curso de treinador em 2011, com uma formação que tinha sido iniciada tendo por objetivo ser professor de Educação Física. Foi também colunista do El País durante algum tempo, deixando através das palavras a certeza de que estaria ali alguém que, a breve prazo, voltaria aos patamares altos por onde passou como atleta. Nunca caiu na tentação de aceitar um trabalho de risco por saber que teria um caminho de aprendizagem a percorrer nesta nova pele, como frisa o El Mundo. Por isso, aceitou o convite para trabalhar nas camadas jovens do Real Madrid em 2013. Foi subindo escalões e, em 2016, chegou à equipa B. No ano passado, as coisas não correram bem e teve o lugar em perigo a meio; esta época, teve um dos melhores arranques de sempre. “Conheço a vida de treinador pelo meu pai, que acompanhei por todo o mundo nesse trabalho. Sei da instabilidade da profissão. Tenho muita ambição de um dia treinar nos seniores mas é um caminho que devo ir fazendo de forma natural. Real Madrid? Essa é uma hipótese que nos toca mas não me parece prudente analisar agora”, referiu nos primeiros anos de técnico.

Como escreve o As, há princípios que definem Solari como treinador nestes primeiros anos: o ataque constante pelos corredores com o envolvimento direto dos laterais, a colocação de um médio mais posicional no meio-campo para assegurar as transições, os blocos de pressão média a variarem com a subida de linhas, o gosto pela posse de bola sem renegar o futebol direto que aprendeu em Itália. Mais do que isso, o argentino é descrito como alguém dialogante, próximo dos jogadores, que gosta de envolver quem trabalha consigo no processo de treino e de jogo, que encontra noutras artes a inspiração para a sua.

Da escrita de Eduardo Sacheri, Roberto Fontanarrosa e Ariel Scher aprendeu que literatura e futebol não são dois mundos assim tão distantes, como recorda o ABC. Ler sempre foi um dos seus hobbies mas, como recorda a Marca, nunca recusava um desafio quando a proposta de trabalho metia pelo meio o convívio com nomes de outras artes. Foi assim com o ator Ricardo Darín, foi assim com o mestre Garry Kasparov, com quem quis fazer um jogo por ser um apaixonado de xadrez. Agora, as peças são outras e o tabuleiro não está propriamente com a melhor disposição mas este é apenas mais um desafio para Solari.

Solari começou nas camadas jovens do Real como treinador, tendo chegado à equipa B em 2016 (Gonzalo Arroyo Moreno/Getty Images)

“Estes jogadores são uns campeões, são uns guerreiros. Já ganharam muitas coisas para este clube e apesar de esta não ser uma situação fácil, vejo-os com muita vontade. Vamos jogar a Melilla com os ‘tomates’ no sítio”, salientou na primeira conferência como técnico interino do Real Madrid, na frase mais forte e que foi o grande destaque. Quiçá, propositado – por vezes basta um soundbyte para tirar o foco de tudo o resto. E olhando para o que se passou, de forma propositada ou não, Solari conseguiu. Antes, no decorrer do primeiro treino, Antonio Pintus subiu com o argentino ao relvado, naquele que tinha sido um dos grandes pedidos de alguns jogadores dos merengues que queriam o preparador de Zidane que fora encostado por Lopetegui. algo que, como seria de esperar, caiu no goto dos pesos pesados do plantel.

Entre Antonio Conte, Roberto Martínez e Mauricio Pochettino (nomes para suceder ao antigo selecionador espanhol que foi dispensado esta segunda-feira), é muito provável que Santi Solari, apesar da mais do que provável vitória no jogo da Taça do Rei com o Melilla, regresse depois à equipa B. No entanto, como escreve o El Españolo caminho como aquele que o amigo Zidane, com quem jogou quatro anos, fez no Real Madrid parece ser uma questão de tempo.