No Bloco de Esquerda ninguém tem dúvidas de que o PS, e António Costa, mudaram de atitude face aos parceiros (sobretudo face ao Bloco de Esquerda) desde o congresso do PS, em maio. Tornou-se mais frio, mais distante, e até adotou “comportamentos menos próprios” em relação aos acordos que firmou, como chegou a dizer Catarina Martins numa entrevista ao Expresso nas vésperas da convenção, referindo-se ao duro puxar de tapete que o PS e o Governo fizeram ao BE no caso da “taxa Robles”. Pedro Filipe Soares até tem uma teoria para esse comportamento, como explicou no Carpool do Observador: “Os sucessos do Bloco assustam alguns dirigentes socialistas”.
Amor com amor se paga, mas noutra moeda. Se no tal congresso de maio, os socialistas procuraram demarcar-se do Bloco ignorando pura e simplesmente os parceiros, neste primeiro dia de convenção, o Bloco de Esquerda quase não fez outra coisa senão falar do PS. A estratégia foi diferente, mas o objetivo foi o mesmo: demarcar-se dos socialistas, dizer que sozinhos são um perigo porque viram à direta, e enaltecer os feitos conseguidos pelo BE em regime de influência ao PS. “Se com 10% conseguimos isto, imaginem com mais“, chegou a dizer Joana Mortágua. É esse o mote do BE para o ano eleitoral que aí vem: pedir mais votos, mais força, porque o voto útil acabou e cada partido conta. Já se percebeu que a porta para uma nova “geringonça” está aberta, mas desta vez o Bloco será mais exigente, e não vai querer ficar em segundo plano.
É verdade que falta um ano para as eleições legislativas, mas a campanha já está definitivamente no ar. Registamos aqui os muitos momentos em que, no primeiro dia de convenção, os bloquistas atacaram o PS para salvarem a sua pele nas urnas.
Catarina Martins contra o diabo da maioria absoluta
O ataque ao PS foi lançado logo no discurso de abertura de Catarina Martins. Depois de diabolizar a direita do PSD/CDS que governou com a troika, a coordenadora do BE pôs o parceiro PS no mesmo saco, lembrando a “alternativa que o PS propunha” em 2015. Nas suas palavras, os socialistas foram a eleições com um programa que “defendia o congelamento de pensões, limitava o salário mínimo ao acordo com as confederações empresariais, prometia reduzir as contribuições patronais para a segurança social e propunha novas medidas de liberalização de despedimentos”. Tudo para dizer que, sozinho, com maioria absoluta e sem a esquerda, o PS teria desviado o caminho para a direita.
Segundo as contas da líder do Bloco, o PS “queria tirar 1660 milhões de euros aos pensionistas e mais 1050 milhões com o corte das prestações sociais”. “Se o PS tivesse imposto a sua vontade, os pensionistas teriam perdido o valor de dois meses das suas pensões. Se o PS tivesse tido maioria absoluta, os pensionistas estariam hoje pior”. Conclusão: “Ainda bem que houve força à esquerda para contrariar as medidas do programa do PS que pretendiam praticamente o contrário”. Fica claro que, daqui para a frente, e para efeitos de caça ao voto, o PS é mesmo o novo adversário do BE. Ou melhor, a sombra de uma eventual maioria absoluta do PS é o diabo a evitar em 2019.
Fazenda não quer “casar” com Costa
O argumento é claro: o PS é limitado pelos constrangimentos de Bruxelas e isso impede-o de ir mais além. O BE não tem essas amarras, logo, votem no BE. Foi isso que Luís Fazenda, um dos fundadores do Bloco, foi fazer ao palco da convenção. Para Fazenda, a política de privatizações, precarização do trabalho e aumento das desigualdades levada a cabo pelo Eurogrupo e a Comissão Europeia está “parcialmente em vigor no nosso país”. E é esse programa que faz com que, em Portugal, o PS não mexa na legislação do trabalho, por exemplo, nem na flexibilização da contratação coletiva.
António Costa, segundo recordou Fazenda, disse certa vez que PS e BE são bons para ser amigos, mas nunca para casar. Pois, agora Fazenda respondeu a Costa: o BE também não quer casar com ele, porque não quer casar com o Eurogrupo. “Não faz sentido casar com o Eurogrupo”, disse antes de largar o microfone.
José Gusmão e o ataque a Augusto Santos Silva
A intervenção mais dura contra o PS, e também a mais clara quanto às ambições de governo do Bloco, veio de José Gusmão. Primeiro, o dirigente bloquista começou por desconstruir uma frase dita por António Costa no congresso de maio, onde disse que o PS “está onde sempre esteve”. Ideia que, segundo Gusmão, está longe de ser verdade. Olhando para os anteriores governos do PS, que não incluíam as exigências da esquerda, fica “confuso”, diz.
De forma dura, Gusmão chega mesmo a sugerir que o PS só fez os atuais acordos com a esquerda por ser a única forma de chegar ao poder. Nada do que se passou nestes três anos serve, por isso, de garantia de que o PS não vai voltar ao seu posto habitual, mais perto da direita, numa próxima oportunidade, que pode ser já em 2019. Será que o PS “se vai lançar ao Rio?”, ironizou o bloquista.
Os ataques mais duros, contudo, foram dirigidos especificamente ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva: “O homem que adorava malhar na esquerda quer voltar a fazer o que mais gosta”, disse. Os adjetivos não deixam margens para dúvida de que o PS é o alvo a abater, para que não chegue à maioria absoluta: “Um partido que já mostra sinais de arrogância e hostiliza os seus parceiros quando ainda não tem maioria relativa, voltará às práticas do passado caso tenha maioria absoluta”, defendeu. Quanto ao Bloco, disse, está mais do que preparado para ser governo. “Estamos prontos para o que é preciso, para o que é urgente, estamos prontos”.
Joana e os fiados
O que acontece ao Bloco em caso de maioria absoluta do PS? Está condenado à irrelevância ou a vender-se para entrar num Governo socialista? Foi com estas duas premissas que Joana Mortágua discursou na convenção do BE. Para a deputada, o destino do BE pode não ser nenhum desses dois. E é aí que entra a ambição bloquista: “Queremos um Governo de esquerda, com um programa de esquerda”, disse, recusando ser muleta num governo do PS. Porque no BE não há “fiados”: “Não trocamos nenhuma carreira europeia pela carreira dos professores ou dos enfermeiros, não abdicamos de um SNS mais forte e de uma escola pública mais forte”, disse, numa crítica clara aos socialistas.
Para Joana Mortágua, a presença do BE no acordo de governação foi fundamental para “influenciar”. E o governo só não foi mais longe porque o PS “travou sempre que quisemos ir mais longe”. O caso do investimento público é disso exemplo. “O investimento publico é o limite da geringonça”, e não é por uma questão de contas certas, “é por uma questão de sustentabilidade da campanha europeia de Mário Centeno”, disse. Mais uma crítica ao PS amarrado a Bruxelas.
A boca subtil de Louçã. E o infinito e mais além
Foi uma alfinetada subtil, mas ainda assim uma alfinetada. “O Bloco é a segurança de quem não volta atrás com a palavra dada” e cumpre os compromissos, disse Francisco Louçã numa referência implícita à célebre “palavra dada é palavra honrada” de António Costa. De resto, aquele que é um dos fundadores do BE não foi frugal na ambição do Bloco de Esquerda: “até ao infinito e mais além”.
Moisés e o apelo aos socialistas para se juntarem ao BE
Moisés Ferreira, deputado bloquista que tutela a área da Saúde no parlamento, falou diretamente ao ouvido do PS. Primeiro, disse que os avanços da legislatura não aconteceram “graças ao PS, mas apesar do PS”. Depois, “sem esquecer o tanto que ainda falta” fazer, pegou em exemplos da falta de investimento e de condições de trabalho no SNS para apelar ao voto no Bloco de Esquerda dos profissionais de saúde e dos utentes.
Mas fez mais do que isso: pegou na proposta de lei de bases da Saúde de António Arnaut e João Semedo para picar os socialistas: “É o que os socialistas querem, mesmo que não seja o que o PS quer”. Por isso, têm uma solução: “Juntem-se ao BE”, disse em jeito de desafio. O adversário está declarado: em tempos de eleições, é o PS o alvo a enfraquecer.
Pureza e a escolha habitual do PS em aliar-se à direita
A alfinetada de José Manuel Pureza aos socialistas também foi subtil, mas esteve lá. O pretexto era a eutanásia, e a ideia de que o BE ia regressar à luta pela descriminalização da morte assistida. Primeiro, Pureza criticou duramente o PCP, sem o nomear, por se ter juntado à direita para votar contra. Depois, umas palavras para o PS, que votou maioritariamente a favor da despenalização: se o PS tivesse tido a mesma postura que teve na eutanásia no resto das “lutas por direitos”, então teria sido melhor e teria havido mais frutos.
É que “nunca foi por falta de disponibilidade da esquerda que o PS se aliou à direita”, disse, em jeito de retrospetiva. “Não é uma inevitabilidade, é uma escolha”. Eis mais uma tentativa de denegrir o PS enquanto partido do centro que tantas vezes olha para a direita.
Soeiro e a facada do PS no coração dos trabalhadores
É um dos novos rostos mais carismáticos do Bloco de Esquerda e fez uma das intervenções mais aplaudidas da noite. Enquanto mostrava vários “símbolos da luta dos trabalhadores”, como uma luva de borracha em homenagem às trabalhadoras de limpeza; uma escala de turnos, pelos “trabalhadores dos transportes, dos call center”; uma t-shirt relativa ao movimento dos cuidadores informais; e uma pedra, em honra dos pedreiros que querem ver o seu direito à reforma antecipada reforçado, José Soeiro fez uma dura crítica ao travão que o PS impõe nas alterações às leis laborais: a legislação laboral que o PS quer manter é nada menos do que “uma facada apontada ao peito dos trabalhadores”, disse.