Portugal vive uma autêntica febre do pão. A palavra “massa-mãe” já começa a entrar nas conversas do dia-a-dia, quase todos os meses abre uma nova padaria artesanal e até grandes marcas começam a apostar numa espécie de reinvenção da sua panificação. Diogo Amorim (responsável da Gleba, a primeira padaria deste género a surgir em Lisboa), Mário Rolando (personagem quase mitológica na área, que inaugurou a Padaria da Esquina com o chef Vítor Sobral) e Paulo Sebastião (o mais recente padeiro artesanal de Lisboa, que abriu há poucos meses a padaria Isco) são três padeiros portugueses que estão a desbravar caminho no campo da padaria artesanal e a regressar às bases mais simples: farinha, água e sal. São também as três pessoas mais indicadas para explicar a desvalorização do pão num passado recente e a sua revalorização nos dias de hoje.
Quando tudo começou a correr mal
“O pão é algo elementar, essencial e extremamente democrático”, explica Diogo Amorim. Durante séculos todo este status quo manteve-se, mas o êxodo rural criou ritmos de vida mais exigentes e as pessoas deixaram de ter tempo para fazer o seu próprio pão. Foi assim que as padarias profissionais começaram a ganhar importância. Mas seria só nos anos 80 do século XX, quando nasceram os primeiros supermercados, que a qualidade do pão começaria a decair de forma muito visível. O pão teve de ser feito a maior velocidade e com garantias de resultados positivos e uniformizados. Este ritmo sufocante fez com que passassem a ser adicionados “pós e pozinhos”, diz Mário Rolando, que tornaram tudo mais simples, no mau sentido da palavra — tão simples que qualquer pessoa, mesmo que não tivesse a mínima formação na área, poderia enfiar-se numa cozinha a fazer carcaças madrugada dentro.
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Paulo Sebastião chama a isto “banalização do pão”. “Criou-se a ideia de que o pão tem de ser uma coisa o mais barata possível, sempre disponível.” Começou-se a perder ainda mais tradição e, por acréscimo, qualidade — nutricional e de sabor —, como corrobora Amorim: “A partir do momento em que a panificação começou a tornar-se numa indústria e a competição foi aumentando, os bons hábitos foram-se perdendo.” Quase ninguém podia fugir do pão sem sabor, carente de mais-valias nutricionais, e que era “de tão má qualidade que rapidamente se tornava seco e desinteressante”. Mário Rolando distribui a culpa por todos: “nós, consumidores; nós, padeiros ou moleiros, fomos estragando o pão”, e ele acabou desterrado “da nossa biblioteca de sabores”. A cultura do pão caiu abruptamente.
A viragem
Lado a lado com a ascensão de popularidade do pão artesanal surgiu aquilo que Diogo Amorim classifica como a “demonização do pão”. A “guerra contra os hidratos de carbono” e a crescente obsessão com o glúten (nos não celíacos) surgiram como forma de manter a linha. O consumo começou a cair a pique, mas um importante fator passou ao lado de muita gente: e se todas estas coisas negativas forem causadas só, e apenas, pelo pão industrializado? As “seitas alimentares” que Mário Rolando menciona — “hoje há mais seitas alimentares do que religiosas; costumava ser ao contrário” — não ponderaram apontar o dedo aos pães sensaborões e pouco nutritivos que inundaram o dia-a-dia.
“[O pão artesanal] é feito só com três ingredientes: farinha água e sal”, refere Paulo Sebastião. “Se compararmos isto com o pão industrial ou das grandes superfícies percebe-se a diferença. São uns 15 ou 20 ingredientes contra três.” Depois, existe a questão da velocidade de produção. “Na fermentação lenta do pão artesanal, bactérias e enzimas trabalham em conjunto para pré-digerir alguns componentes da massa e da farinha, tornando-os mais disponíveis para o nosso corpo absorver. As leveduras mais lentas têm tempo de trabalhar os açúcares (o amido) e transformá-los em dióxido de carbono. Algo que noutros pães industriais não acontece.” O que pode fazer mal não é o pão em si — é o pão mal feito.
A maior atenção dada ao comer melhor acabou por ter duas vertentes: por um lado, diabolizava o pão, mas por outro deixava as pessoas mais abertas a conhecer alternativas “naturais e saudáveis”, como diz Diogo Amorim. Foi desta forma que o pão artesanal começou a dar-se a conhecer. Impulsionado pela crescente mediatização dos chefs e pelas próprias redes sociais, os apaixonados pela panificação começaram a aparecer e a trazer consigo a experiência acumulada noutros países. Diogo Amorim e a sua Gleba foram a primeira pedra no charco. No meio do marasmo o jovem de Santa Maria da Feira decidiu arriscar e abrir uma padaria assente em boa matéria-prima. Em pouco tempo Lisboa passou a saber de cor onde encontrar o pão de côdea rija, interior húmido e travo azedo feito por Amorim.
Um negócio de nicho
Isso não quer dizer que não existisse alguma resistência inicial. “Pão queimado” era uma expressão muito utilizada para descrever aquilo que o padeiro da Gleba fazia. Paulo Sebastião, o mais recente a entrar neste campeonato da panificação artesanal, ainda sofre do mesmo — “muitos consumidores chegam ao pé de nós, olham para o nosso pão e pensam que ele está demasiado cozido”. Isso tem uma razão de ser. Os três explicam que a côdea bem cozida é uma característica normal e até benéfica para garantir o mais extenso período de preservação. Uma tonalidade exterior mais escura pode fazer crer que o pão está seco, mas é precisamente o contrário que acontece. “Nós damos muita cor ao pão não só por causa do sabor mas também para que a crosta preserve a humidade interior. A partir do momento em que ele sai do forno corre o risco de secar, a menos que uma côdea robusta o impeça.” “Muito do nosso trabalho nos primeiros meses foi precisamente sensibilizar as pessoas para aquilo que fazíamos.” O pão de fermentação lenta pode ainda não ser absolutamente consensual e é mais caro que os industrializados, mas isso não significa que não se possa cimentar nos hábitos alimentares dos portugueses.
Agricultor, moleiro, padeiro e consumidor — este sistema de quatro camadas ganhou nova dinâmica, não só na parte final do processo, mas também no momento onde tudo começa, do cereal à feitura das farinhas. Mário Rolando diz que graças a esta nova vaga de pão surgiu “uma nova geração de agricultores — o economista ou arquitecto que sai da cidade e vai para o interior — a cultivar centeio ou trigo”, por exemplo. Também alguns moleiros e moagens de média dimensão “começam a acordar com a gestão dos filhos ou netos dos donos”. Por muito que Amorim seja mais contido na sua visão do futuro, afirmando que “ninguém ficará rico com este negócio” e que ele “será sempre de nicho”, a verdade é que existem novos “pequenos negócios e explorações” e, nesse cenário, “todos acabam por ganhar” — incluindo a cultura gastronómica portuguesa, que volta a ver um dos seus elementos mais importantes a ser tratado, e confecionado, com o respeito que merece.
Artigo publicado inicialmente na revista Observador Lifestyle nº 2.