Os dois mais altos dirigentes do Khmer Vermelho ainda vivos foram esta sexta-feira condenados, no Camboja, a prisão perpétua por genocídio, num veredito histórico contra um regime que matou quase dois milhões de pessoas, entre 1975 e 1979.
O ideólogo do regime, Nuon Chea, de 92 anos, e o chefe de Estado do “Kampuchea Democrático”, Khieu Samphan, de 87 anos, já tinham sido condenados, em 2014, a prisão perpétua por crimes contra a humanidade. A pena foi confirmada em 2016.
Nuon Chea “contribuiu significativamente” e “detinha o poder de decisão final” juntamente com Pol Pot, líder do Khmer Vermelho, afirmou o juiz Nil Nonn, do tribunal internacional especial, apoiado pela ONU. Por seu lado, Khieu Samphan era “o rosto” do movimento ultra-maoísta, acrescentou.
Escondido sob os habituais óculos escuros, Nuon Chea ouviu o veredito a partir de uma célula especial, devido ao seu frágil estado de saúde, no tribunal. Khieu Samphan encontrava-se na sala.
Várias centenas de pessoas, incluindo membros da minoria muçulmana Cham e monges budistas, assistiram também à leitura do veredito. Neste segundo processo, provavelmente o último contra antigos membros do regime Khmer Vermelho, uma centena de testemunhas foram ouvidas a denunciar decapitações, violações, casamentos forçados e canibalismo. Os dois acusados negaram as atrocidades.
Crime de genocídio dado como provado
O veredito de genocídio é considerado “histórico”, tendo em conta que é a primeira vez que alguém do Khmer Vermelho é condenado pelo crime de genocídio. Ao todo, cerca 1,7 milhões de pessoas (o correspondente a cerca de um quinto da população) morreram entre 1975 e 1979 no Camboja durante o regime do Khmer Vermelho, por causa de trabalhos forçados, doenças, fome e purgas políticas. Milhares de outros morreram durante a guerra civil que se seguiu à queda da organização maoista dirigida por Pol Pot, dissolvida em 1998.
“Isto no Camboja é comparável ao julgamento de Nuremberga depois da II Guerra Mundial”, declarou ao Guardian David Scheffer, conselheiro da ONU para os julgamentos do Khmer Vermelho.
Nearly 40 years after the collapse of Pol Pot's regime in Cambodia, an international tribunal rules that the Khmer Rouge committed genocide, which resulted in the deaths of an estimated 1.7 million people https://t.co/DXYT2x3lfH pic.twitter.com/A1yAOdfixQ
— CNN Breaking News (@cnnbrk) November 16, 2018
Nuon Chea e Khieu Samphan estavam a ser julgados desde 2011 por este tribunal internacional, mas esta acusação de genocídio diz respeito aos crimes praticados contra vietnamitas, cham e outras minorias religiosas. O tribunal internacional especial considerou “provado o crime de genocídio”, sublinhou Nil Nonn. O objetivo do regime era “estabelecer uma sociedade sem religião e homogénea através da supressão de todas as diferenças étnicas, nacionais, religiosas, raciais, de classe e culturais”, afirmou. Entre 100 mil e 500 mil Chams, de um total de 700 mil, foram mortos entre 1975 e 1979.
Esta definição não se aplica aos massacres, mesmo em massa, de Khmers por Khmers. Isto porque, muito embora a maioria das mortes sejam de pessoas desta etnia, os crimes não foram considerados pela ONU como genocídio por terem sido cometidos por pessoas com as mesmas origens étnicas.
Os sucessivos julgamentos dos líderes do regime, contudo, não têm agradado ao primeiro-ministro do Camboja. Segundo o New York Times, já em 1998 Hun Sen, antigo membro do Khmer Vermelho, declarou que em vez de serem levados à barra dos tribunais, os dois acusados deveriam ser recebidos com “buquês de flores, não com prisões e algemas”.
Na abertura desto julgamento, em junho de 2011, quatro antigos responsáveis estavam sentados no banco dos réus. A antiga ministra dos Assuntos Sociais do regime Ieng Thirith não chegou a ser julgada por sofrer de demência, foi libertada em 2012 e já morreu. O marido Ieng Sary, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, morreu em 2013 com 87 anos.
Além de Nuon Chea e Khieu Samphan, o tribunal condenou um outro acusado, Douch, de seu verdadeiro nome Kaing Guek Eav. Douch foi chefe da prisão S-21, ou Tuol Sleng, onde 15 mil pessoas foram torturadas antes de serem executadas, nos arredores de Phnom Penh, nos conhecidos “Killing Fields” ou campos da morte. Foi também condenado, em apelo, em 2012, a prisão perpétua.
Pol Pot, o “irmão número um”, morreu em 1998 sem nunca ter sido julgado.