Nisto dos concertos, andamos com a mania que já vimos tudo. Já descobrimos na rede, já vimos os vídeos, em cada cavadela há uma opinião. E ao chegar à sala de espectáculos chegamo-nos à frente do palco sem segredos por descobrir (até temos aquele link com o alinhamento das atuações mais recentes). Isto pode ser verdade muitas vezes, mas vai ser sempre uma enorme mentira quando o assunto é “um concerto dos Idles”. Porque um concerto dos Idles é, verdadeiramente, algo que só acontece uma vez. Facto.

Tocaram no Lisboa ao Vivo esta terça à noite. Aposto aqui tudo que não foi como o concerto que deram no Porto no dia anterior. E que nunca haverá outro idêntico. E que vão ser sempre todos insuperáveis. E devia ter escrito esta última frase em maiúsculas para perceberem o entusiasmo que por aqui corre, mas dizem que maiúsculas é igual a má educação. E para isso já bastam os Idles, mal-educadões mas com razão, com sentido, com vontade, pessoas a quem se perdoam todos os palavrões, todos os dedos do meio esticados, tudo. Eles cospem-nos na cara para nos salvar. E antes que pensem que isto é um exagero, fica aqui a verdade: não é. É um concerto de rock’n’roll. Foi um enorme concerto de uma enorme banda de rock’n’roll.

Os Idles são punk rockers ingleses, um bando de gente mal comportada que parece que quer destruir o mundo. Ou melhor, gente que parece não querer saber se o mundo vai acabar ou não, como se estivessem a tratar da própria auto-destruição. Mas não estão. Com toda esta sujidade, os Idles mascaram a mais bonita e digna das intenções: que toda a gente goste do próximo como de si mesmo. Mas sem doutrinas de fé. Que gostem mesmo, que se abracem todos uns aos outros como eles abraçaram ali toda a gente naquele concerto. Cada corda partida um beijo, cada cacetada no bombo um xi-coração de família. Danças sem sincronia porque quem está livre, livre está para dançar como bem entender, querem lá eles saber de coreografias. Mosh pits incluídos, porque os mosh pits purificam.

Mark Bowen, o guitarrista que vai levar meio mundo a querer formar uma banda

De uma forma simplista, e para usar uma referência contemporânea, podemos comparar os Idles aos Sleaford Mods, a cuspir umas quantas verdades dolorosas com toda a raiva que o palco oferece. Mas enquanto os outros são dois, estes são uma banda a sério. E não há nada melhor do que ver uma banda a sério a usar o punk rock para trabalhar as seguintes palavras: honestidade, luto, dor, superação, catarse, redenção. Na essência, sair da merda enfrentando-a, enquanto a dita é espalhada por uma ventoinha. Muitas vezes, estas palavras e o seu uso, nas mãos de gente dada ao rock’n’roll, podem rimar com cliché ou moralismo inconsequente. Mas com estes ingleses a história é outra. Até porque eles — lá está — são ingleses. Mesmo que não o soubéssemos, mesmo que não se notasse na pronúncia do homem que canta, é vê-los a passear pelo palco, todos eles pose, desleixo cool, peito para fora, sou maior que vocês todos, se for para distribuir estalada também pode ser. Juntando as duas coisas — sentimentalismos de barba rija e englishness suburbana — não há como escapar a tamanha sinceridade saída da garagem como quem atira aquele Datsun 1200 para o alcatrão com as rodas a chiar.

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Os Idles não são meigos, nem nas palavras nem na vista. Porque com meiguice eles não iriam chegar onde querem. Caramba, o vocalista desta tropa macaca, Joe Talbot, showman dos showmen (apenas superado por Mark Bowen, o guitarrista que atua quase pelado e que toma conta do palco, do público e do mundo lá fora), é o gajo recheado de problemas familiares, um pai que foi o paradigma do mau exemplo, a mãe que morreu entre a gravação dos dois discos, Brutalism e Joy as an Act of Resistance (editados num espaço pouco maior que um ano). O mesmo que perdeu a filha logo após o nascimento. Que pelo meio deixou as drogas e o álcool. E que quer mostrar a toda a gente que há forma de passar pelo pior dos caminhos e chegar a algum lado. Não diz qual é, mas que ele existe, lá isso existe. Palavra de Joe. E, como está escrito mais acima, nunca seria com meiguices que ele haveria de cumprir a sua missão.

“This song is dedicated to every scumbag in this room”

Dedicam canções aos miseráveis, canções que não param, o baterista não para, alimenta o instrumento com os espasmos do corpo, é impressionante vê-lo trabalhar. Há poucas notas, há muito feedback, as guitarras são canhões, são empunhadas como canhões, e levam tudo pela frente, os fascistas e os outros.

“This song is about helping the ones who need”

Há um mal entendido no meio da multidão mas acaba em abraços. Joe Talbot agradece, diz que é bonito, bate palmas, batemos todos. Depois grita versos que soam a tiros, sobre machismo, desemprego, assistência social, parentalidade violenta. Não há tabus, não há tretas. E é sempre um concerto de punk rock, nunca deixa de ser. Crowd surfing, com a rapaziada sobre os ombros de todos aqueles amigalhaços que ali foram ver os Idles. E a tarola, sempre aquela tarola, insistente, incansável, parece que fez um pacto com o diabo. Que canseira, senhores. Que canseira. E ainda assim, mais de hora e meia disto e eles não se cansam. Nem eles nem nós. Mas é só suor. Quase que se ouve o suor a cair.

Aquela bateria ali do lado esquerdo? É difícil explicar…

“This song is about how much we love immigrants”

Uma mulher invade o palco. Outras seguem-na. De repente, a banda é substituída por um grupo de mulheres. E está tudo bem. Está sempre tudo bem. É raro ver um concerto tão livre e tão ordeiro na vontade, tudo ao mesmo tempo. Um concerto em que a banda agradece aos seguranças. Em que se pede calma ao rapaz que insistentemente reclama pela sua canção favorita e que diz chamar-se António Costa: “Mantenham-se longe deste António Costa, ele é violento”. Piada ou não, acaba tudo em abraços. Sempre. E não há encore, porque não há mais. Foi tudo entregue. Os Idles dão tudo e deixam aquela sensação de privilégio. Que privilégio foi vê-los, aqui e agora.

Eles querem explicar que a Theresa May não presta mas também querem fazer a festa, qualquer festa, em qualquer parte, não interessa. Querem que percebamos de uma vez por todas que um imigrante é a melhor pessoa do mundo. Que homossexual sou eu e és tu e somos todos. Que um fascista é burro ou otário ou as duas coisas ao mesmo tempo. Que há quem precise de ajuda e que todos podemos ajudar alguém, seja de que maneira for. Não é uma igreja, não é uma seita nem é um culto. São uns gajos que falam a verdade, não basta isso? E fazem-no com canções que parecem hinos de bancada de futebol tocados por várias locomotivas a vapor.

No fundo, são só sentimentos, mas daqueles que não vão ao forno, não levam tempero, não são passados a ferro, muito menos dobrados ou arrumados na gaveta. Isto cola-se à sola das botas e à palma das mãos (e esta, hein?). No fim, ficamos na dúvida: isto não será de facto um culto? Pelo menos por enquanto é. E pelo menos por enquanto, agora mesmo, os Idles são a maior banda do mundo. DO MUNDO. Em maiúsculas. Com toda a boa educação que o punk rock nos dá. E é muita.

Fotografias de Diogo Ventura