Quem sobe do Largo do Caldas em direção ao castelo e deixa o Mercado do Chão do Loureiro à direita, encontra de esquina O Velho Eurico, casa de pasto que tantos lisboetas agora comentam, mesmo atrás da Igreja de São Cristóvão, neste momento em obras. Esplanada e duas árvores vistosas enquadram a entrada. Estamos na Mouraria e não há que enganar. A ementa anuncia-se à porta. Na última terça-feira, a sopa era de legumes e os pratos do dia compunham-se assim: pernil assado com batata, frango frito à passarinho, entrecosto grelhado e pescada cozida com todos, cada qual entre sete e nove euros. Não admira que a casa esteja quase sempre cheia.
Às quatro e meia da tarde, a cozinheira e duas filhas ajudantes arrumavam e limpavam o espaço, enquanto um casal fazia contas, últimos clientes de uma hora de almoço muito esticada. Contaram elas que dias antes outros jornalistas ali tinham estado para falar com a patroa. Parece que agora há jornais e revistas de volta do restaurante e o motivo só pode ser um: O Velho Eurico, concorrida tasca com toalhas de mesa aos quadradinhos, prepara-se para fechar portas ao fim de mais de 40 anos.
Carolina Cunha, de 70 anos, tem as mãos ao leme desde que o marido, Eurico Ferreira, de 73, caiu doente. Foi há cerca de oito meses. Uma das empregadas foi à porta chamá-la e ela, que mora a dois passos, veio sentar-se com o Observador para contar histórias e explicar o que acontecerá ao negócio nos próximos tempos. Janeiro será o último mês de trabalho, isso já é certo.
De repente, voltamos atrás no tempo, nada menos que a 1958, quando um rapazinho de 13 anos chega a Lisboa para trabalhar numa carvoaria, das muitas que então existiam na cidade e onde também serviam copos e petiscos. Nascido em Ferreira do Zêzere, Eurico Ferreira tinha perdido a mãe aos cinco anos e uns tios de Reguengos de Monsaraz deitaram-lhe a mão. Com eles viveu até chegar à capital. A carvoaria era precisamente aqui, no número 3 da Rua de São Cristóvão, e Eurico foi empregado até que o chamaram para a Guerra Colonial.
“Esteve uns três anos em Angola e como era uma pessoa muito orientada, e sempre teve muito jeito para o negócio, juntou algum dinheiro por lá e quando voltou tomou conta do negócio já como dono e acho que a casa nessa altura nem nome tinha”, conta Carolina Cunha, que se casou com Eurico há 22 anos, em segundas núpcias, depois de ter ficado viúva e de ele se divorciar.
Depois do serviço militar, ele casou-se, teve uma filha e o negócio fez-se próspero. De um lado servia refeições à hora de almoço e do outro, com parede e passagem pelo meio, tinha uma mercearia. Quando a clientela do restaurante era muita, Eurico montava mesas e cadeiras na loja. “Foi assim até abrir ali um Pingo Doce. Nessa altura, ficámos sem clientela na mercearia e passou a ser tudo só restaurante. Fomos sempre melhorando, sempre fazendo arranjos”, resume Carolina Cunha, que chegou a Lisboa aos 22 anos, vinda de Paredes de Coura, e trabalhou como auxiliar em infantários da Alameda e de Carnide.
Conheceram-se porque eram vizinhos e Carolina frequentava a mercearia. Juntaram-se em 1996, mas uma década depois a saúde de Eurico começou a fraquejar. Segundo a mulher, andou anos em hospitais até perceberem que precisava de um transplante de fígado e foi isso mesmo que fez, entregue à equipa do médico Alfredo Barroso. Depois teve uma broncopneumonia, “e foi por um triz que o salvaram”, e ainda voltou à sala de operações para fazer um “bypass”.
“Tem passado coisas muito difíceis, mas quero dizer que, de tudo, o pior foi o acidente vascular cerebral há oito meses”, detalha a mulher, de modos delicados e voz sussurrada. A fala e os movimentos ficaram afetados e a recuperação tem sido lenta mas visível.
“Sempre foi um homem com uma força muito grande. Nos meses todos em que andou doente do fígado, muito magro, ia às compras à praça, trazia hortaliças, carnes, peixe, tudo. As pessoas admiravam-se.”
Atrás do balcão, a adiantar a sopa do jantar, a cozinheira vai às lágrimas quando recorda a energia de Eurico a trabalhar, “capaz de fazer tudo aqui de olhos fechados”. Por perto, duas ajudantes descascam batatas e Carolina esclarece que chega a gastar por dia oito sacos de 20 quilos cada. “Os estrangeiros, sobretudo, gostam de comer tudo com batatas, até peixe.”
São os turistas, aliás, os que mais vezes aqui aparecem – espanhóis, franceses, alemães – e ora encontram o restaurante à passagem, ora o descobrem na internet. “Já fizeram mais despesa, não são só os portugueses que andam poupados”, refere Carolina.
Atualmente, com Eurico convalescente, ela já pouco cozinha, mas não regateia talentos: “Sou minhota, cozinho alguma coisa.” Evidentemente, o bacalhau à moda do Minho é dos pratos que mais saem. “A salada de polvo também, mas agora abrandámos, porque o polvo está muito caro e rende pouco”. O filho faz-lhe as compras e dois homens estão na grelha a carvão, no primeiro andar do prédio (de que Carolina e Eurico são proprietários há poucos anos).
Já os portugueses costumam vir em grupo e para uma geração de 20, 30 anos O Velho Eurico tornou-se lugar de culto. É a qualidade da comida que faz o êxito da casa? “A comida e o atendimento”, diz a responsável.
“A pessoa que entra precisa de bom ambiente e nós temos. Ao fim de semana vem muita gente jovem e adoro aquela alegria, fazem barulho, deitam-me a casa abaixo. Sinto-me orgulhosa.”
Que ela e o marido teriam de se afastar do negócio mais cedo ou mais tarde, estava decidido, mas ninguém esperava que fosse tão de repente . O estado de saúde de Eurico a isso levou. Carolina Cunha diz que vai trespassar o restaurante a um casal de Lisboa que tem negócios noutras áreas, mas garante que vão manter o nome. Houve obras há poucos anos e o fundador da casa mandou fazer um letreiro novo, altura em que O Eurico passou a ser O Velho Eurico. “Em princípio” também a carta é para continuar como está, apenas com menos opções do que as atuais dezenas. Quantos aos empregados, ainda não é certo quem deseja ficar ou sair.
O casal deverá manter-se na zona de Lisboa enquanto Eurico não estiver recuperado. O sonho de Carolina Cunha de voltar a Paredes de Coura e ali gozar a reforma “com sossego e umas galinhas” é ainda uma interrogação.