Faz 20 anos que a família mafiosa mais conhecida do mundo (talvez a par com os Corleone, mas não há certezas) se estreou no canal de cabo norte-americano HBO (a 10 de janeiro de 1999), um evento que é considerado o ponto de viragem para o advento da chamada Era Dourada da Televisão. Apesar de, na altura, viver em Nova Iorque, não vi logo a série. Não tinha televisão em casa e nem sequer tinha visto um episódio de “Os Sopranos” quando conheci dois dos actores da série — Michael Imperioli e Johny Ventimiglia —, através do Bruno de Almeida, que, então, estava a preparar um filme com ambos (“On the Run”).

E estava longe de imaginar que, um dia, acabaria por me “infiltrar”, não na máfia de Nova Jersey, mas nos estúdios Silvercup, em Queens, onde participei, como figurante, numa sequência do quinto episódio da segunda temporada – na altura tinha entrado para o Screen Actors Guild (através de um trabalho de voz off que fiz em Português) e aproveitava para ganhar uns trocos como figurante nas produções que se faziam em NY. Por isso, apesar de argumentista e realizador em início de carreira, mas escondendo essa faceta e limitando-me ao papel de figurante, foi uma óptima oportunidade de passar um dia a assistir e a trabalhar nas filmagens do que viria a ser reconhecia, consensualmente, como uma das melhores séries de sempre.

Aquele tipo ali à esquerda, de camisa e óculos? Nem mais: Artur Ribeiro, no episódio “Big Girls Don’t Cry”

No episódio em que participei, com o título “Big Girls Don’t Cry”, a personagem Christopher (Michael Imperioli), que além da sua ambição de subir na estrutura da organização mafiosa também tem ambições criativas, nomeadamente escrever para cinema, vai fazer um workshop de representação para escritores. Ora, nem de propósito, fui chamado para fazer um dos “colegas” do Chris Moltisanti. Para além disso, como tinha a mesma altura do actor que fazia um dos papéis principais desse mini-plot, fiz igualmente de stand-in durante os ensaios e a marcação de luz – e, aí sim, fui um verdadeiro infiltrado, pois assisti, de um ponto de vista privilegiado, ao trabalho do realizador Tim Van Patten com o director de fotografia Phil Abraham, servindo de cobaia para ambos prepararem a cena.

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O dia começou mal para a produção, mas bem para os figurantes – na altura, sendo membro do sindicato de actores (SAG), ganhava cento e poucos dólares por dia, por 8 horas de trabalho, e todas as horas extraordinárias eram pagas, e bem. Se entrámos em horas extraordinárias naquelas filmagens, foi graças ao Tony Soprano/James Gandolfini, que terá sido convocado cedo de mais para filmar umas cenas no consultório da Dra. Melfi, a psicóloga que orientava o maior de todos os mafiosos.

[Assim começavam todos os episódios de “Os Sopranos”:]

Como a equipa estava a começar o dia pela nossa sequência, depois de uma zanga do actor, mudaram a ordem de filmagens e foram filmar primeiro as cenas no consultório. Deste modo, os figurantes ficaram todos na esperança de um atraso que se traduzisse em mais uns dólares, ao final do dia. No meu papel de “infiltrado”, não pude deixar de me sentir em conflito interior.

Como realizador, sei bem o stress que é entrar em horas extras (e o custo para a produção) e apesar de, neste caso, também eu acabar por ganhar mais, senti a consciência pesada, porque percebia muito bem o lado da produção: ter de interromper toda a preparação que estava a ser feita para acomodar o capricho do actor. Ainda assim, também percebi o lado do Gandolfini, claramente as convocações da folha de serviço não foram bem feitas (afinal, caros colegas e actores portugueses, não é só por cá que o pessoal se queixa das folhas de serviço…). Contudo, à hora de almoço, estando ao lado do Tony Soprano na fila da cantina, posso assegurar que ele já estava muito bem-disposto, revelando bom-apetite e chegámos ao fim do dia sem que ninguém tenha acabado com as rótulas dos joelhos partidas (pelo menos, que a polícia saiba…).

O génio de David Chase, o brilhantismo de Gandolfini

Porque é que “Os Sopranos” são ainda hoje uma referência tão incontornável para quem vê ou faz televisão? Não é, definitivamente, pela minha modesta participação, claro. E, ao contrário de muitos dos meus amigos e colegas escritores e realizadores, não tenho uma relação afectiva muito fanática e entusiasta com a série (mas eu também sou aquele gajo que não passou do quarto episódio do “Breaking Bad”…), embora considere, sem sombra de dúvida, “Os Sopranos” uma das melhores séries de televisão de sempre. Mas já a vi numa fase posterior (em DVD), não senti a mesma excitação que terá tido quem, eventualmente, estivesse cansado do standard televisivo da época, sobretudo dos canais de sinal aberto, e tenha tido este gigante do Tony Soprano a entrar-lhe pela casa dentro, semana após semana, inovando, a cada episódio, o que seria de esperar de uma série de televisão, e alterando, para sempre, o paradigma e a medida de forças entre televisão e cinema.

[Entrevista de 2001 com David Chase:]

E a questão-chave, neste caso, é mesmo o cinema. É sobejamente conhecida a vontade que o criador da série, David Chase, tinha de fazer cinema e a frustração que sentia, ao fim de quase duas décadas a trabalhar em televisão, sempre com o sonho de passar para o outro lado. Embora hoje em dia já pareça tão distante, nesses tempos, fazer televisão era uma arte menor – as estrelas de cinema recusavam trabalhos para o pequeno ecrã e, se aceitavam, era sinal de já serem estrelas cadentes, e o mesmo para realizadores e argumentistas. Por isso, quando finalmente Chase teve carta verde dos executivos da HBO para fazer algo que nunca tinha sido feito – ou pudesse até ser feito – num canal aberto, transferiu toda a sua vontade de fazer cinema para os episódios desta série que. Como ele próprio afirmou, quis fazer um filme por semana.

O resultado é indiscutível. Depois de “Os Sopranos”, começámos a ver orbitar para a televisão, realizadores, argumentistas e actores de cinema, atraídos por este formato de “serialização” de uma história – passando a fazer-se uma distinção, na caracterização das séries de televisão, entre as que são episodic series, série de episódios fechados, que se podem ver fora da ordem, sem continuidade, nomeadamente as procedural (séries criminais), e as serial, em que uma história, com um arco maior, é contada em episódios com continuidade, como eram as soap operas, ou telenovelas, com a má-fama associada ao formato. Embora “Os Sopranos” não fosse a primeira série do género, veio definitivamente mudar o paradigma e é hoje o formato da maior parte das séries de sucesso, sobretudo nas novas formas de visionamento em streaming e binge watching.

[Excerto de uma entrevista com James Gandolfini:]

No fundo, a razão porque este formato se tornou apelativo, para tantos criadores como para actores vindos do cinema, é que, ao contrário das longas-metragens, que precisam de uma grande dose de economia narrativa, poder de síntese na sua dramaturgia e um limite de arco narrativo dentro das duas horas de duração, em televisão, os autores podem desenvolver e aprofundar as suas personagens mais alongadamente, no tempo, de uma forma mais próxima à literatura – o que, do ponto de vista do trabalho do actor, se traduz igualmente num maior espaço de exploração na construção e crescimento da personagem.

A máfia, a análise social e o humor

Se a premissa de “Os Sopranos” não fosse, de facto, possível fazer, num canal de sinal aberto, por causa da violência, da linguagem ou da nudez, não foram estes elementos que tornaram a série um sucesso mundial e ainda hoje inesquecível. Uma série que, aparentemente, é sobre a máfia de Nova Jersey, acaba por ser muito mais do que isso. Chase criou um micro-cosmos que, apesar de perfeccionista no detalhe da comunidade que retrata, é universal na humanidade, que é exposta e aprofundada ao longo das sete temporadas, nas relações familiares, nos conflitos interiores das personagens, na análise social, mas também no humor, irreverência e momentos até de quase puro delírio (manter uma história, como esta, viva durante sete temporadas requer uma criatividade fora do comum, mas também coragem de saber quando terminar – e o final da série é, ainda hoje, debatido quanto ao seu sentido e significado).

[A cena final de “Os Sopranos”. Se nunca viu a série, não carregue no play:]

Por outro lado, se muitas vezes, em televisão, os actores gostam mais de fazer o “vilão”, por ter mais níveis e nuances de exploração emocional e dramática que o “bom”, temos, em Tony Soprano, um anti-herói que incorpora todos as sombras de um antagonista, mas a humanidade, fraquezas e desafios de um protagonista. Tony Soprano abriu a porta para o sucesso de uma grande variedade de anti-heróis, embora continue ainda a ser o mais reconhecido e amado, só rivalizando, talvez, com Walter White, de “Breaking Bad”, com o qual, pessoalmente, não encontrei a mesma afinidade ou empatia.

Voltando à minha experiência, agora já não como figurante, mas como argumentista, penso que partilho, como todos os meus colegas, um sentimento de enorme gratidão para com David Chase, porque, com o sucesso de Sopranos, série de autor, que ele próprio, como showrunner, orientou com mão de ferro em todos os seus aspectos criativos – da escolha do elenco à produção e realização –, trouxe um enorme prestígio e maior peso à figura do autor, em televisão, ao contrário do cinema, onde a figura do realizador é indiscutível como autor e o argumentista, muitas vezes, nem sequer é bem-vindo no local de filmagens. Não posso deixar de citar um episódio referido num artigo da Vanity Fair, de 2007: um actor abordou Chase com o que muitos actores costumam dizer: “A minha personagem não diria isto!”, Chase respondeu: “Quem te disse que a personagem é tua?”. Como disse o argumentista Adi Hasak: “O cinema é um cemitério para escritores”. Por isso, em nome de todos os argumentistas, obrigado David Chase e feliz aniversário para a família Soprano.

Artur Ribeiro é argumentista e realizador