Há um apelo difícil de explicar no novo disco de Sharon Van Etten. Não é óbvio, não é claro. Não é imediatamente compreensível porque é que de repente chegamos à última canção a pensar “espera lá que isto é especial, há aqui qualquer coisa de especial”. Sobretudo porque às primeiras vezes que as canções tocam é difícil não ficar meio desiludido. A razão é a do costume: as expectativas. Estamos à espera de confissões dolorosas e diretas à guitarra ou ao piano, aquela cena meio indie, meio folkie, com código postal de Nova Iorque, música para chorar, imediatamente para chorar, com pouca produção, meio desleixada, cinicamente pouco ambiciosa. Não é nada disso que acontece neste disco. Mas se calhar é essa diferença que torna Remind Me Tomorrow cativante.
Sharon Van Etten quer fazer tudo bonito. “Tinham as mãos juntas quando disseram adeus”, canta ela a dado momento na canção que abre o disco. Ela quer fazer bonito e ela consegue. Juntar as duas coisas — o “querer” e o “conseguir” — é meio caminho andado para um disco correr bem. Em Remind Me Tomorrow, Van Etten junta uma banda com coração e sangue e braços e pernas e suor às máquinas e às programações e aos sintetizadores e a todas essas coisas sem pele nem ossos. E fez uma obra dissonante mas elegante. Isto rima, mas as canções nem por isso, parece que nada rima, que tudo é abrasivo. E é essa falta de harmonia ao primeiro impacto que torna este regresso tão bom. Isso e a maneira que Sharon Van Etten tem de se estar a lixar para quase tudo menos para o que ela quer fazer, da forma que lhe interessa em dado momento.
E neste momento em particular, aquele que gerou Remind Me Tomorrow, Van Etten quis comunicar. Quis juntar diferentes formas de comunicação, unir o que à partida pode parecer pouco óbvio, sobretudo para ela própria. Antes deste novo álbum, Sharon editou cinco discos, entre 2009 e 2015. Seis anos, cinco discos, em princípio o suficiente para que quem a ouve fique com a ideia que a conhece. Errado. Conhecemos, mas não conhecemos tudo. Nem ela se conhece bem. E os últimos tempos foram de descoberta e mudança. Fim de relações, início de outras, um filho, digressões, pausas, estudos, representação, psicologia. É muito. É muita bagagem. Quando regressou ao estúdio, não quis estar sozinha e essa vontade ajudou a que aparecesse uma outra: a de experimentar.
Numa recente entrevista ao The Guardian, Sharon Van Etten dizia:
“Como é que as pessoas estabelecem ligações tão profundas? E como é que a música tem um papel tão importante nisto? E isto de comunicar, como é que há pessoas que não o conseguem fazer nas suas vidas, mas por alguma razão sentem que podem falar comigo? Ou que uma canção consegue dizer coisas que elas não conseguem?”
[ouça o novo “Remind Me Tomorrow” através do Spotify:]
Daí partiu para o resto, ir mais longe nesta coisa de comunicar pelas canções. Fazendo um disco menos óbvio, que exige mais atenção da parte de quem o ouve. E no qual a artista se libertou, se deixou de preconceitos autoimpostos. Se é para comunicar, que seja através de todos os meios à disposição, sobretudo os que gerarem mais gozo. Na sala de ensaios que partilha com o ator Michael Cera, pegou no sintetizar Jupiter 4 do rapaz, começou a desenhar melodias, a imaginar texturas, deixou a porta aberta para produções e contribuições externas e fez um disco honesto e ambicioso. É um corpo coeso, mas tem uns quantos pontos chave que fazem a diferença. Ora vejamos:
O código. Sharon tem gostado de falar muito sem dizer tudo, ou de pelo menos não dizer tudo com muita clareza. Isso não mudou. Nem mudou a dificuldade que ela aparentemente tem em lidar com a realidade, com o conforto, com o que é ou o que tem de ser, com a regra, com a instituição, Ou isso ou engana-nos bem, mas essa também é uma razão ótima para nos agarrarmos às canções, porque são trapaceiras com mestria. E nós, coitados de nós, sortudos de nós, lá vamos, por essa ladeira do engodo abaixo. Achamos que percebemos tudo, que sabemos onde estava a cabeça e o coração da artista na altura da escrita das canções. Um pouco de noção basta para percebermos que não é bem assim. Mas, por essa altura, já fomos enrolados no novelo.
“Seventeen”. É uma grande canção. Enorme. Enorme canção. Dá para tudo. Para dançar e para pensar na vida. Para nos lembrarmos de quando tínhamos 17 anos ou para chegarmos à conclusão de que não fizemos nada de jeito quando tínhamos 17 anos. Tem um piano nos acordes menores certos para chorar, mas também uma bateria que ao vivo é acompanhada por maracas. MARACAS. É nervosa, é ansiosa, é tranquila, mas um bocado a fingir. E tem um momento em que Sharon Van Etten perde a noção dos limites da sua voz e deita tudo para fora de uma forma absolutamente arrepiante. Já o fez ao vivo, está em vídeo e é de ver, rever, repetir e repetir outra vez:
https://www.youtube.com/watch?v=G8l3lUZ0qC0
Surpresa. Remind Me Tomorrow é um disco feito por uma cantora e compositora que não quer ser óbvia. “Mas foi mãe. Mas esteve a estudar psicologia. Mas esteve cinco anos sem gravar um disco. Mas entrou na série ‘The OA'” E então? Isso quer dizer o quê? Isso faz dela uma artista totalmente previsível? Isso quer dizer que agora deixa de ter ambiguidades, deixa de ter dúvidas, deixa de as querer transformar em canções? Não, boa gente, nada disso. E de canção em canção é impossível não nos convencermos do contrário. “Olha o que esta bandida foi fazer…”
“I Told You Everything”. É um delicioso filme miserável. Duas pessoas num bar numa conversa difícil. Duas pessoas que têm coisas tramadas para discutir. Não sabemos qual é o tema, não sabemos o que aconteceu antes daquele momento e não sabemos como termina. Mas essa ausência de respostas torna a canção muito mais nervosa, há muito mais ansiedade naquelas poucas notas que por ali andam, meio a flutuar, meio presas ao chão. É uma forma muito densa e dramática de começar um disco, mas é uma forma perfeita de o fazer. E sabemos que uma canção é boa quando a ouvimos e ao mesmo tempo vemos as respetivas personagens à nossa frente, sem a ajuda de álcool ou de qualquer outro amigo da imaginação colorida.
Isto é de todos e não é de ninguém. Há uma boa dose de arte na forma como Sharon Van Etten faz canções em formato one size fits all. Tudo é saído dela, mas a medida serve a quem ouve, sempre. As histórias não têm um final concreto, as personagens não têm qualquer tipo de personalidade jurídica, não há um guia, não há um tema absolutamente dominante a não ser a própria existência humana (e esse digamos que é um tema abrangente). Não é um tique de quem se preocupa com aquilo que os outros vão pensar. Esse mal não parece afligi-la. É o “método Van Etten”, expressão que até podia dar uma bonita entrada na Wikipedia.
“Comeback Kid”. O primeiro single ideal. Perfeito para atirar uma de “então pensavam que já tinha visto tudo o que eu tinha para dar?”. Um misto de tanta coisa, esta cantiga. Dancing para o século XXI que gosta de bailar como faziam algumas das estrelas pop dos 80s, mais místicas, mais góticas, o que quiserem chamara-lhe. Batida deliciosa, belo momento de inspiração. É também o tema novo que roda há mais tempo, por isso não vamos gastar aqui muitas palavras.
Os outros. Sam Cohen e John Congleton têm um papel fundamental neste Remind Me Tomorrow. O primeiro ajudou na composição da canções, como ajudou tanta gente, tem uma lista de colaborações que vai daqui a toda a parte. Ou, para dar exemplos concertos, de Shakira a Kevin Morby. Um talentoso. E John Congleton, produtor da moda e que ajuda a lançar modas, o senhor que faz coisas bonitas ao som de outras mulheres com jeito para isto, como St. Vincent ou Angel Olsen. Sabe trabalhar em equipa, tem gosto, percebe da técnica, da tática e tem jogo de cintura. Um mestre.
“Jupiter 4”. É uma canção de amor, é um agradecimento por um amor em particular, pelo amor em geral. É um desejo de amor para o mundo todo, o mundo que a quiser ouvir. E é tudo isto sobre um formato maquinal e robótico, a música é fria, quase gélida, é o amor a acontecer num ambiente digital onde não há calor em lado nenhum. Mas é a mesma canção em que Sharon canta “a love so real”. Repete a frase quatro vezes no final do tema. Estas contradições ficam-lhe tão bem. É que ficam mesmo. E esta “Jupiter 4” é de uma beleza tremenda. Sharon, cantas isto tão bem, pá. Tão bem.
Há muito de atriz neste Remind Me Tomorrow. Há ficção, porque a artista é dada às coisas da representação (e deem-lhe mais espaço para isso que o talento está todo lá). Mas não há aqui ponta de mentira. É Van Etten a ser tudo o que consegue ser. Porque ela quis fazer tudo. Sempre quis. Tudo o que era possível. Conseguiu. Tem-lhe corrido bem. Faz tudo bonito. Mesmo quando surpreende, quando dá a volta, quando escolhe o caminho mais complicado. É preciso ter jeito para isto. Sharon tem jeito de sobra.
Sharon Van Etten atua a 11 de julho no festival NOS Alive