O Pac-Man apareceu em 1980, primeiro no Japão, depois nos Estados Unidos e só mais tarde no resto do mundo, e tornou-se um ícone da década mais celebrada e recordada do século XX e cuja cultura pop ainda hoje invade muitas discotecas, linhas de moda e coleções de alguns fãs mais acérrimos. O Pac-Man, que em Portugal foi também vocalista de banda e não só um jogo, é um dos elementos fulcrais sempre que a década de 80 é lembrada. Pac-Man, por motivos que pareciam óbvios, é também a alcunha de Manny Pacquiao, pugilista filipino e campeão do mundo. Mas Pacquiao é Pac-Man devido à combinação das primeiras sílabas dos dois nomes que apresenta – Pac de Pacquiao, Man de Manny – e não por culpa do jogo em que o círculo amarelo tenta apanhar os fantasmas de várias cores. Até porque, para um rapaz nascido em 1978 nas Filipinas, o Pac-Man devia ser uma realidade algo distante.

Manny, que na verdade é Emmanuel, é o quarto dos seis filhos de Rosalio e Dionisia, um casal de Tango, uma localidade perto da cidade de General Santos, nas Filipinas. Rosalio e Dionisia separaram-se quando Manny tinha pouco mais de dez anos. A família Pacquiao não escapava à extrema pobreza dos subúrbios filipinos e tudo se tornou mais complicado quando o pai, o único que trabalhava, saiu de casa – o arroz, a principal fonte de alimentação, escasseava e os seis filhos do casal comiam principalmente bananas e raízes. A relação de Manny com o pai sofreu um revés quase irrecuperável quando o pugilista tinha 12 anos: numa história só revelada décadas depois pelo treinador do filipino, o norte-americano Freddie Roach, o pai de Manny terá sucumbido ao desespero causado pela fome e matou o cão do próprio filho, cozinhou-o e comeu-o ao jantar. Manny não voltou a casa do pai.

A viver permanentemente com a mãe, o dinheiro era pouco ou nenhum e a primeira solução que Dionisia encontrou para não ver os filhos morrer de fome foi tirá-los da escola. Manny saiu para as ruas, onde comprava donuts de manhã cedo e depois os vendia às pessoas que passavam, com inflação de um peso, para conseguir levar dinheiro para casa no final do dia. Foi nesta altura, quando o dia a dia do pugilista se fazia de pouco mais do que deambular pelas ruas, que apareceu no panorama um homem com uma quota de responsabilidade considerável nos títulos conquistados por Pacquiao. Sardo Mejia, irmão de Dionisia e tio materno de Manny, apoiou a irmã e os sobrinhos e conseguiu, a pouco e pouco, tirar o rapaz das ruas. Levava-o para casa, gastava-lhe a energia com treinos contínuos de boxe, ofereceu-lhe as primeiras luvas e obrigava-o a assistir aos combates de Mike Tyson na televisão.

Em 2001, contra Lehlohonolo Ledwaba, na primeira vez que fez um combate no MGM Grand Hotel & Casino, em Las Vegas

Na autobiografia que publicou em 2010, “Pacman: A Minha História de Esperança, Resiliência e Determinação de Nunca Dizer Nunca”, Pacquiao falou extensamente sobre os dias passados em casa do tio Sardo, o jogo de pés que aprendeu a observar as galinhas que o tio tinha no quintal e um combate que lhe “mudou a vida para sempre”, a derrota inesperada de Mike Tyson aos pés de James Douglas, em 1990. “Soube, sem dúvidas, que iria lutar. Percebi nesse dia que os mais fracos podem, e muitas vezes conseguem, ganhar”, escreveu o pugilista. Com o entusiasmo próprio de quem iria viver a paixão pelo desporto através de alguém mais novo e com tempo e qualidade para alcançar os sonhos que tantos deixaram para trás, o tio Sardo empenhou-se em treinar o sobrinho e transformou uma das divisões da pequena casa onde vivia numa espécie de ginásio. “Para o tio Sardo, o facto de ter um sobrinho que partilhasse o seu hobbie favorito era a derradeira bênção. Ainda que ele nunca tivesse tido treino propriamente dito, ambos levávamos as coisas muito a sério e sabíamos que um dia seríamos campeões”, lembrou Pacquiao no livro de memórias.

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O início não foi fácil. Aos 40 anos, Manny Pacquiao tem 1,66 metros e pesa 66 quilos: com 12 ou 13 anos, os números físicos eram ainda mais diminutos. Manny não tinha músculo, era fraco, comia pouco e tinha pouca resistência. Mas compensava em esforço. Levantava-se todos os dias às quatro da manhã para ir correr, treinava sem parar e via de forma obsessiva as cassetes de Mike Tyson, que depois imitava em quase tudo, desde o movimento à técnica e à arrogância. “Depois de treiná-lo durante seis meses, percebi que iria ser campeão do mundo. Aprendia tudo muito rápido. Tinha uma grande auto-disciplina”, recordou o tio Sardo à Post Magazine, em 2015. Manny começou a competir em parques a céu aberto, vencendo todos os oponentes por KO, e depois de se mudar para Davao City com o tio tornou-se o melhor pugilista júnior das Filipinas no espaço de três anos. Quando fez 15 anos, deixou o tio Sardo para trás e mudou-se para a capital, Manila, onde viveu nas ruas e dormiu no interior de um ringue de boxe de um ginásio onde treinava.

No “Combate do Século”, em 2015, onde perdeu com Floyd Mayweather por decisão unânime dos três árbitros

Tornou-se profissional em 1995, aos 16 anos, e enviava todo o dinheiro que ganhava para a mãe. Venceu os onze primeiros combates com algumas manhas à mistura – colocava pesos nos bolsos para ser mais pesado e ser admitido nas categorias que queria –, e perdeu o 12.º. A partir daí, 12 vitórias consecutivas que lhe garantiram o primeiro título da carreira: venceu Chatchai Sasaku em 1998, na Tailândia, e tornou-se campeão do mundo na categoria peso-mosca. Amealhou dinheiro suficiente e mudou-se para os Estados Unidos, onde encontrou Freddie Roach, primeiro treinador e principal companheiro de um percurso que não podia ser solitário. “Puxou-me para debaixo da asa dele. Estava sempre a ver se estava bem, mesmo fora das horas de treino. E tudo o que eu tinha para oferecer em troca era a minha amizade e lealdade”, recordou Pacquiao ao Mirror há uns anos. Juntos, dois underdogs – Roach foi diagnosticado com Parkinson antes de completar 30 anos – fizeram o que nunca tinha sido feito: Manny Pacquiao foi o primeiro e único pugilista da história do boxe a tornar-se campeão do mundo em oito categorias diferentes.

Em 2001, com 23 anos, Pacquiao desafiou Lehlo Ledwaba, então detentor do título mundial de peso-pluma, para um combate pelo cinturão. Foi a primeira vez que o filipino lutou no MGM Grand Garden Arena, em Las Vegas, um dos grandes palcos da alta roda do boxe internacional. Pac-Man derrotou Ledwaba em seis rounds e deixou todos os jornalistas presentes na Arena a perguntar quem era aquele rapaz. 18 anos depois, Manny Pacquiao regressa ao MGM, após lá ter perdido e vencido ao longo dos anos, para um combate já depois dos 40 anos e contra um norte-americano de 29 que diz que o vai “destruir”. Contra Adrien Broner, o filipino cumprirá o 70.º combate oficial, depois de 462 rounds, 60 vitórias (39 por KO), sete derrotas e dois empates. Mas as lutas de Pacquiao estão longe de ficar apenas dentro do ringue.

Com Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, que já reconheceu que gostaria que Pacquiao fosse o seu sucessor

Em 2007, candidatou-se pela primeira vez à Câmara dos Representantes das Filipinas. Perdeu, numa derrota eleitoral que foi explicada com o facto de a população “não o querer perder enquanto ícone desportivo”, mas não desistiu. Voltou a tentar, desta vez de forma bem sucedida, em 2010. Foi eleito congressista pelo distrito de Sarangani, o local onde nasceu a mulher, Jinkee Jamora, com quem casou em 2000 e de quem tem cinco filhos (Emmanuel Jr., Michael Stephen, Maria Graça Divina, Rainha Isabel e Israel). Três anos depois, na antecâmara da reeleição, integrou o Partido Demokratiko Pilipino-Lakas ng Bayan, liderado pelo vice-presidente do país, e apontou a mulher para o cargo de vice-governadora de Sarangani. Pelo meio, conseguiu completar o equivalente ao ensino secundário, entrou na universidade e concluiu um curso superior em gestão de empresas. Em 2016, com mais de 16 milhões de votos, entrou para o Senado das Filipinas e já garantiu que continua a competir para angariar dinheiro para as próximas campanhas eleitorais e para as ambições políticas que ainda tem por cumprir. Apoio de peso, pelo menos, já tem: Rodrigo Duterte, o polémico presidente filipino, já reconheceu que quer que Manny Pacquiao seja o seu sucessor depois das eleições de 2020.

A mãe, Dionisia, foi entretanto viver para os Estados Unidos. Com o pai, Rosalio, fez as pazes há alguns anos, depois de o encontrar numa das vezes em que visitou a aldeia onde cresceu. Ali perto, construiu a Pac-Man Village, um aglomerado de casas para 200 famílias que viviam em habitações sem condições e onde recolocou a grande maioria dos vizinhos do tempo em que era criança e comprava donuts para vender a quem passava na rua. Sem nunca deixar de ser profundamente religioso, deixou a fé católica e tornou-se evangélico – para desagrado da mãe, que inicialmente rejeitou a ideia de ter um filho pugilista porque queria que Manny fosse padre e atribuiu a derrota com Mayweather no “Combate do Século” ao abandono da Igreja Católica. A religião, aliás, é um dos prismas que mais polémica tem trazido às declarações públicas do filipino: depois de lhe ser atribuída uma frase que defendia que “todos os homossexuais deveriam ser assassinados”, mais tarde reivindicada pelo jornalista que escreveu a notícia, Pacquiao acabou por explicar que acha que homens e mulheres homossexuais são “piores do que animais” mas ressalvou que “não os condena” pessoalmente, só ao casamento, já que se trata de “um pecado contra Deus”.

Com Adrien Broner, que enfrenta este sábado em Las Vegas

O pugilista foi treinador-jogador da KIA Picanto, uma equipa de basquetebol das Filipinas, é dono de um outro clube da mesma modalidade e ainda faz parte da equipa de senadores que organiza torneios de solidariedade. É músico e já lançou dois álbuns e um EP mas nos últimos anos dedicou a vertente do entretenimento à representação, tendo aparecido em vários programas de televisão e estando a colaborar com o realizador filipino-americano Rob Schneider nas filmagens de um novo filme. Ainda assim, as ambições de Manny Pacquiao parecem estar totalmente viradas para o panorama político e é por isso que continua, aos 40 anos, a aceitar combates high profile como o do próximo sábado. Para se candidatar, precisa de dinheiro. Para ter dinheiro, precisa de fazer aquilo que faz melhor: lutar. Depois de uma fase em que chegou a ser considerado o segundo atleta mais bem pago do mundo, no seguimento do “Combate do Século” que perdeu para Floyd Mayweather em 2015 – naquele que foi o evento desportivo que mais dinheiro envolveu na história –, o filipino caiu de rendimento, começou a fazer menos combates e esteve de 2009 a 2018 sem vencer por KO. O hiato terminou em julho passado, quando deixou Lucas Matthysse por três vezes no chão e recordou os melhores momentos da carreira e aquela noite contra Lehlo Ledwaba em Las Vegas.

Manny Pacquiao tem 40 anos. Adrien Broner tem 29. A velocidade não é a mesma, a destreza não é a mesma, o tempo de recuperação é necessariamente maior mas nada disso interessa quando a paixão pelo desporto transporta as esperanças de um país. “Continuo apaixonado pelo desporto e o boxe é a minha paixão”, disse há pouco tempo. 24 anos depois de se tornar profissional e 18 anos depois daquela noite memorável com Ledwaba, Pac-Man continua a comer peixe frito, frango e arroz antes de cada combate, Freddie Roach continua a ser o treinador que tem de “lutar para o obrigar a descansar” e a taxa de crime nas Filipinas continua a cair sempre que o desportista mais bem sucedido da história do país entra no ringue. No desporto, o objetivo é vencer Broner e conseguir uma desforra com Mayweather. Sem as luvas calçadas, pouco faltará para lermos notícias sobre o presidente Manny Pacquiao.