Fez campanha ao lado de Joana Mortágua nas duas últimas eleições autárquicas. Nesta última, ela era a cabeça de lista do Bloco de Esquerda à câmara de Almada, ele o cabeça de lista do Bloco à Assembleia Municipal. Foram ambos eleitos — ela vereadora, ele deputado municipal. E o Bloco de Esquerda obteve o “melhor resultado de sempre” (11% dos votos) naquele concelho do distrito de Setúbal, que, pela primeira vez em mais de 40 anos, saiu das mãos do PCP para passar para as do PS (que por sua vez, e em contraciclo, se coligou com o PSD). Agora, Carlos Guedes, até aqui deputado municipal pelo Bloco de Esquerda, anunciou a desvinculação do partido em rutura com Joana Mortágua, que é também presidente daquela concelhia bloquista.

Joana Mortágua, contactada pelo Observador, não quis prestar declarações, mas, em comunicado divulgado esta terça-feira, a concelhia bloquista a que preside diz que Carlos Guedes adotou “atitudes consideradas inadequadas a um representante eleito”, afirmando que a retirada de confiança política acontece apenas como culminar de “um processo de degradação das relações políticas entre o deputado municipal, a concelhia e os eleitos”.

As acusações de Carlos Guedes contra Joana Mortágua, contudo, foram duras. “O Bloco está refém, em Almada e no distrito, de uma subserviência e de um medo irracional de afrontar o PCP que nos impede de ter independência”; “há uma tentativa absurda de tudo controlar, desrespeitando o programa do BE”; “o BE em Almada é apenas formado por quem segue a cartilha imposta pela Joana Mortágua”; ou “a votação de braço no ar impede a livre expressão das pessoas: há formas democráticas de fazer as coisas e esta não é uma delas”. Estas foram algumas das palavras que Carlos Guedes usou para descrever ao Observador o processo de cisão do BE, que se arrastou desde que começou o desentendimento com Joana Mortágua (que também é deputada na Assembleia da República), até que lhe foi retirada a confiança política, levando-o a desvincular-se esta sexta-feira do partido e a ficar como deputado municipal independente.

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Tudo começou com a votação do BE no Orçamento da Câmara Municipal e nas Grandes Opções do Plano. A discussão, à semelhança do que acontece no país, prolonga-se entre outubro e novembro e determina as orientações estratégicas e orçamentais do executivo camarário para o próximo ano. Segundo explica ao Observador Carlos Guedes, Joana Mortágua, na qualidade de vereadora bloquista, começou por votar contra aqueles documentos “sem que tivesse consultado a concelhia”. Mas um mês depois, quando chegou a hora de o Orçamento ser votado na Assembleia Municipal, Carlos Guedes percebeu que, “objetivamente, não podíamos votar contra porque havia uma série de questões que faziam parte do programa do Bloco que estavam a ser respondidas”, explica, referindo-se sobretudo a questões relacionadas com habitação, realojamento local e reabilitação urbana.

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No entender do agora ex-bloquista, o voto devia ser de viabilização (pela abstenção). Foi o que explicou, juntamente com outro deputado municipal, Manuel Braga, aos membros do órgão de coordenação política da concelhia do BE de Almada, numa reunião onde Joana Mortágua não esteve presente, por estar fora do país. “Foi uma reunião longa onde explicámos os motivos para a abstenção e ao fim de três horas votámos: ficou aprovado por unanimidade que nos iríamos abster na votação final do Orçamento”, conta.

“Subserviência” ao PCP e uma retirada de confiança de braço no ar

Depois dessa votação, contudo, já regressada do estrangeiro, Joana Mortágua, que preside àquela concelhia, convocou nova votação a apelar ao voto contra. A concelhia acabaria, assim, a mudar novamente o sentido de voto para o voto contra, num gesto que o ex-bloquista considera “ilegítimo” porque “não se vota novamente uma decisão já tomada pelo mesmo órgão”. Por essa razão, faltou à votação final e não se fez substituir. Não é esse, contudo, o entender da concelhia. No comunicado divulgado esta terça-feira, lê-se que Carlos Guedes faltou à votação do orçamento apenas por não concordar com o sentido de voto. “Após discordar da decisão tomada por unanimidade em reunião da concelhia de votar contra o plano e orçamento municipais, o deputado municipal Carlos Guedes recusou-se a participar na Assembleia Municipal e a fazer-se substituir, adotando atitudes públicas que a coordenadora considerou serem inadequadas a um representante eleito”, lê-se.

Estava instalada a guerra. A partir daí, como também explicou num post no blog Almada 2019, e numa publicação no Facebook, o deputado municipal recorreu ao partido: primeiro, à comissão de direitos do Bloco de Esquerda, que alegou não interferir em questões políticas; depois, à comissão política nacional, que, diz, “decidiu não se pronunciar”.

No blog onde anunciou a desvinculação, Carlos Guedes acusou mesmo a bloquista de “lidar mal com quem não está disposto a servir os seus propósitos” e de lidar ainda “pior com quem a afronta ou ousa discordar dela”. Mas, mais do que isso, afirmou que o núcleo do BE em Almada é cada vez mais reduzido porque se limita a quem “segue a cartilha imposta pela Joana Mortágua” e que o trabalho de Joana Mortágua em Almada está “subjugado a interesses que nada têm a ver com o programa eleitoral” do BE, havendo “uma clara subserviência do BE às posições do PCP”. Ao Observador, insistiria ainda com a ideia de que “não há, objetivamente, outra explicação para votar contra o Orçamento se não for por medo de afrontar o PCP”. “O que está a comandar a ação do Bloco em Almada é o facto de o executivo na câmara ser do PS e PSD”, acusa, sublinhando que “fazer política local não é o mesmo do que estar na Assembleia da República: as dúvidas têm de ter substância, e neste caso não têm”.

O caso culminou, já em dezembro, com uma retirada de confiança política ao bloquista divergente. Na sua versão da história, Carlos Guedes diz que Joana Mortágua convocou uma reunião da concelhia a anunciar que a distrital de Setúbal tinha “sugerido” que Carlos Guedes renunciasse ao mandato como deputado municipal. A sugestão foi posta a votação: de braço no ar, os membros da concelhia de Almada votaram a favor da renúncia. Carlos Guedes, contudo, recusou renunciar.

A guerra continuou, desta vez num plenário de aderentes do BE de Almada, onde foi votada uma proposta de retirada de confiança política: mais uma vez, a votação foi de braço no ar, e os aderentes votaram a favor. Uma forma de votar que o visado contesta: “Quando se vota ‘pessoas’ o voto é, por norma, secreto”, diz. “Há formas democráticas de fazer as coisas, e esta não é uma delas”, diz.

No comunicado desta terça-feira, contudo, a concelhia de Almada, presidida por Joana Mortágua, tem outra leitura: “No dia 10 de dezembro de 2018 a coordenadora concelhia de Almada informou a Comissão Política do Bloco de Esquerda de que pretendia retirar a confiança política ao deputado municipal Carlos Guedes. A decisão foi tomada em plenário de aderentes do concelho de Almada após o camarada ter recusado o pedido da concelhia para renunciar ao mandato. A decisão reuniu apoio unânime na concelhia e na coordenadora distrital de Setúbal e foi efetivada no dia 3 de janeiro 2019”, informa.