Miklós Fehér morreu há precisamente 15 anos, a 25 de janeiro de 2004. O momento em que o húngaro caiu desamparado marcou para sempre o futebol português e o Benfica e tornou-se um dia que ninguém quer recordar mas todos querem homenagear. Luís Filipe Vieira, que era presidente dos encarnados há três meses, prometeu que iria à Hungria com o troféu de campeão nacional; Jorge Jesus, na altura treinador do V. Guimarães, queria ver Miki de olhos abertos no dia seguinte; Anikó, a mãe do jogador, quebrou o silêncio em 2017 e garantiu que “os olhos ainda se enchem de lágrimas” quando ouve o nome do filho.
15 anos depois, o Observador recorda 15 frases e 15 fotografias de jogadores, colegas de equipa, árbitros, treinadores e presidentes. Frases da noite em que Fehér caiu, dos dias que se seguiram à noite em que Fehér caiu, dos anos que se seguiram à noite em que Fehér caiu. Miki morreu há 15 anos. Mas ainda ninguém o esqueceu.
Foi difícil voltar a treinar e a jogar. Antes, ainda tivemos o velório no estádio e o funeral na Hungria – queríamos muito ir homenagear o Miki uma última vez. No final da época, vencemos a Taça de Portugal. O grupo agarrou-se à memória dele, ao que ele representava para nós, e vencemos. Ele esteve sempre presente. Sempre. Eu acredito que ele, onde quer que estivesse, lá no céu, deu um empurrão para essa vitória. Para essa, e para o título nacional do ano a seguir.”
Ricardo Rocha era o central titular dos encarnados, ao lado do brasileiro Argel, e conhecia Fehér desde o tempo em que ambos jogavam no Sp. Braga. No final da temporada 2003/04, o Benfica conquistou a Taça e dedicou-a ao húngaro – assim como aconteceu com o Campeonato no ano seguinte. O plantel encarnado, liderado por Luís Filipe Vieira, voltou a Gyor e à Hungria, onde Miki está sepultado, no final da época 2004/05, com os dois títulos ganhos depois da morte do avançado.
O presidente tinha prometido que íamos fazer a festa aqui no Benfica e conseguimos fazer isso. Agora temos que festejar com os adeptos do Benfica que foram magníficos ao longo da época e recordar que esteve sempre connosco ao longo do ano como 12.º jogador: o nosso querido Miki Fehér. Ele esteve sempre connosco a ajudar quando nós não tínhamos força e esteve sempre ao nosso lado.” [em declarações ao Mais Futebol]
Petit, agora treinador do Marítimo, tinha chegado a Lisboa no ano anterior, proveniente do Boavista. Depois de assumir rapidamente a titularidade, foi uma das peças fulcrais na equipa encarnada que em 2004/05 se sagrou campeã nacional pela mão de Giovanni Trapattoni. No dia da consagração, mais de um ano depois da morte de Fehér, Petit não esqueceu o colega de equipa e lembrou que Miki sempre foi “o 12.º jogador”.
O mais difícil naquela altura foi termos de continuar o nosso dia a dia sem a presença do Miki, pelos motivos que foram. Continuar a viver sabendo que já não íamos mais ter o Miki por perto. Nos dias depois foram todas as questões que pairaram sobre nós. Se ele estava em condições de jogar futebol porque é que aquilo tinha acontecido? S aconteceu a ele pode acontecer a qualquer um de nós? Ficou ali aquele trauma de que podia acontecer a qualquer um. Aquela situação foi difícil de ultrapassar.” [em declarações ao Sapo Desporto]
A par de Simão Sabrosa, Nuno Gomes era um dos líderes do plantel encarnado. O avançado, atualmente comentador televisivo, estava a realizar a segunda época na Luz – depois do regresso que se seguiu a uma aventura nos italianos da Fiorentina – e ali ficaria até 2011. O avançado foi um dos únicos jogadores a revelar o receio que a morte de Miki Fehér causou em todos os profissionais de futebol, principalmente aqueles que testemunharam o momento da queda do húngaro, e garantiu que o desaparecimento do colega de equipa deixou “questões a pairar”.
Estava lesionado e falhei aquele jogo em Guimarães. Naquela altura eu morava sozinho. Assistia ao jogo pela televisão no meu apartamento e não sabia o que se estava a passar. Comecei a ficar depressivo, sabendo depois que ele faleceu. Aquela imagem ficou remoendo na minha cabeça. O cacifo dele no estádio era ao lado do meu. No dia seguinte chegar lá, ver aquelas flores, a camisola, ir ao enterro dele… Foi muito complicado.” [em declarações à BTV]
Luisão tinha chegado ao Benfica no verão anterior. O central brasileiro, nesta altura apenas um reforço para a defesa que ainda não tinha dado qualquer prova e que não era o líder de balneário que se tornou com o passar dos anos, falhou a ida a Guimarães devido a lesão e assistiu a tudo pela televisão. Nos anos que se seguiram à morte de Fehér, Luisão comentou várias vezes que perdeu noites de sono com a imagem de Miki deitado no chão na cabeça e que lhe custou regressar ao balneário, onde o armário do húngaro era mesmo ao lado do seu.
Estava a ver o jogo pela televisão, porque tinha uma lesão e não fui a Guimarães. O Miklós era um menino bom, não se chateava com ninguém e andava sempre com um sorriso nos lábios. Nunca tinha visto ninguém a morrer em direto e fiquei chocado. Ver um amigo a morrer e eu sem poder ajudar. Fiquei muito desorientado. Mais tarde ligaram-me e confirmaram-me que o Miki tinha morrido.” [em declarações ao Mais Futebol]
Tal como Luisão, também Geovanni estava lesionado e assistiu a tudo através da transmissão televisiva. O médio brasileiro acabou por ter a confirmação da morte de Fehér por telemóvel, longe dos colegas de equipa.
Foi um acontecimento muito difícil, será difícil esquecê-lo, por mais anos que viva. Não é normal um jogador com a juventude do Fehér morrer no terreno de jogo. Não sei o que me espera ainda na minha carreira, mas sei que Fehér estará para sempre na minha vida.” [em declarações ao Mais Futebol]
José Antonio Camacho estava a realizar a segunda e última temporada na Luz – para depois regressar em agosto de 2007. O treinador espanhol, conhecido pela agressividade herdada dos tempos em que era jogador, mostrou um lado raramente visto ainda no relvado do D. Afonso Henriques e dias mais tarde, no velório no Estádio da Luz, quando não conseguiu conter as lágrimas. Na altura, a fotografia de Camacho a chorar foi mesmo capa do jornal Marca, que destacou a frase: “Foi a coisa mais forte que já me aconteceu”. “Chorei de raiva e impotência. Vês que está ali deitado e que não podes fazer nada, que está a ir…”, disse o treinador espanhol.
Lembro-me muito bem do dia em que ele faleceu. Antes do jogo estive a falar com ele durante meia hora, pois na altura falava-se na possibilidade do seu empréstimo. Garanti-lhe que tal não ia acontecer, pois José Antonio Camacho contava com ele. O treinador admirava-o enquanto homem e jogador.” [em declarações ao Record]
Ao longo de mais de 15 anos na presidência do Benfica, Luís Filipe Vieira nunca falou muito sobre a morte de Fehér. O presidente dos encarnados tinha sido eleito em outubro de 2003, pouco mais de três meses antes, e tinha tido uma conversa longa com o jogador húngaro antes da visita ao V. Guimarães, para lhe garantir que não seria emprestado. Foi de Vieira a iniciativa de realizar o velório de Fehér na Luz, de viajar até à Hungria para assistir ao funeral e de construir um busto do jogador nas instalações encarnadas – e foi também o presidente dos encarnados que fez a promessa, entretanto cumprida, de regressar à Hungria com o troféu de campeão nacional.
Sorriu e caiu inanimado, daí a minha surpresa quando o vi cair. O sorriso e a forma como olhou para mim não faziam prever o que se passou a seguir. Nunca passei por nada assim. Nada se pode comparar com a perda de uma vida humana. Foi demasiado marcante e foi sobretudo triste ver o sofrimento e o desespero dos outros jogadores e dos que o tentavam salvar.” [em declarações à SIC Notícias]
Olegário Benquerença foi a última pessoa a olhar para Miklós Fehér com vida. O árbitro mostrou um cartão amarelo ao húngaro, já que o jogador atrasou o recomeço do jogo para perder tempo, provocando aquele último sorriso que protagoniza a fotografia mais repetida, comentada e divulgada de Fehér. Benquerença terminou o V. Guimarães-Benfica sem dar qualquer tempo de compensação, principalmente porque foi isso que os jogadores de um e outro lado pediram logo depois da saída de Fehér do relvado, na ambulância.
Segui com ele na ambulância e os médicos continuavam a tentar a reanimação. Não foi possível salvar o Fehér. Infelizmente não foi. Aquilo abalou-me porque, mais do que um jogador, uma figura pública, morreu um jovem. Ver os jogadores a chorar, sabendo eu que era uma situação crítica, é algo que custa. Mas fiz o meu trabalho. Tive que conter as lágrimas e fazer o meu trabalho.”
Júlio Fernandes, dos Bombeiros Voluntários de Guimarães, era um dos elementos destacados para acompanhar o jogo, tal como acontece sempre. Foi um dos primeiros a chegar junto de Fehér, acabando por perder protagonismo com a entrada em campo dos médicos do Benfica e do V. Guimarães, mas acompanhou o jogador na ambulância que o transportou até ao hospital, onde acabaria por ser confirmada a morte.
Estou aqui apenas por respeito à comunicação social. Peço desculpa mas não estou em condições de tecer qualquer comentário ao jogo. O que mais desejo é que o Fehér amanhã tenha os olhos abertos.”
Jorge Jesus era o treinador do V. Guimarães e ainda passaria pelo Moreirense, pela União de Leiria, pelo Belenenses e pelo Sp. Braga até chegar ao comando técnico do Benfica. Nos instantes logo a seguir ao apito final de Olegário Benquerença, o protocolo ditava que Jesus teria de aparecer perante a comunicação social, como era habitual. O técnico cumpriu mas recusou falar sobre o jogo – e revelou um desejo que, infelizmente, não se realizou.
Ele saiu na ambulância e nós voltámos a jogar. Mas o que queríamos era sair rapidamente dali e ir para o hospital ter com ele. O jogo já não importava nada. A vitória e o meu golo não importavam nada.”
Fernando Aguiar marcou o golo da vitória do Benfica em Guimarães um ou dois minutos antes de Fehér cair. Mais tarde, disse que foi “o pior golo da carreira”. O canadiano nascido em Portugal, hoje com 46 anos, foi um dos primeiros a chegar perto do húngaro. Acabou por sair do Benfica ainda em 2004, para tentar uma pequena aventura na Suécia, regressando depois para representar o Penafiel, o Gondomar e ainda o Pedrouços.
Aproximei-me, vi-o inanimado e comecei a saltar, a gritar para o banco também. Vieram logo os médicos, os do Benfica e os do Vitória. Estava a chover muito. Os médicos queriam usar o desfibrilhador, mas tinham medo de o eletrocutar. Ninguém pode imaginar o pânico que se vivia no relvado. O que me faz mais confusão até hoje é que eu disputei a bola com ele, senti que estava a bater num muro, porque ele era muito alto e forte, e depois caiu, sozinho, como se tivesse caído com um sopro.”
Rogério Matias, atualmente comentador da BTV, era na altura jogador do V. Guimarães de Jorge Jesus. Esteve em campo durante os 90 minutos da receção ao Benfica e, enquanto central, foi dos elementos vimaranenses que esteve mais em contacto com Fehér. Depois de Olegário Benquerença apitar para o final da partida, andou pelo relvado algo perdido, a consolar os jogadores do Benfica que não queriam acreditar no que tinha acabado de acontecer.
Fez-se tudo o que era possível para o ajudar. Mas não chegou. Naquele momento o futebol não interessa nada. O resultado e o jogo não interessam nada. Foi um colega de profissão que morreu à nossa frente. Lembro-me de sair do banco e ir a correr para lá. Toda a gente foi a correr até ele.”
Manuel José estava emprestado pelo FC Porto ao V. Guimarães na temporada em que Fehér morreu. Era um dos suplentes que estava no banco dos vimaranenses quando o jogador húngaro caiu – e, tal como todos os outros, levantou-se e entrou dentro do relvado quando se percebeu que algo estava errado.
Como homem, era muito humilde. Sempre a sorrir. Eu acredito que se o Miki tivesse que escolher um fim, escolheria aquele: caiu a sorrir, a fazer o que mais gostava de fazer, que era jogar futebol.”
Romeu, jogador do V. Guimarães naquele 25 de janeiro de 2004, cruzou-se com Fehér alguns anos antes, durante a breve passagem dos dois jogadores pelo plantel do FC Porto. Alguns dias depois da morte do húngaro, garantiu que este morreu a fazer aquilo de que mais gostava: sorrir e jogar futebol.
A nossa vida mudou totalmente naquela noite terrível. Sempre que alguém refere o nome dele, lembramo-nos, vemos a imagem dele, ficamos com um nó na garganta, uma dor terrível percorre o nosso coração e os nossos olhos enchem-se imediatamente de lágrimas.” [em declarações ao Record]
Ao longo dos anos, sempre que a família Fehér se pronunciou sobre Miki, esse papel foi assumido pelo pai – também ele Miklós e também ele antigo jogador de futebol. Em março de 2017, quando a seleção húngara se deslocou até Portugal para disputar um jogo a contar para a qualificação para o Mundial da Rússia, os pais de Miki viajaram com a comitiva e visitaram o Estádio da Luz e o busto do filho entretanto inaugurado. Nessa altura, Anikó Fehér quebrou o silêncio mantido ao longo de 13 anos e falou sobre a morte de Miki. “Os nossos dias, os nossos anos, são os mesmos: acordamos e fazemos as nossas rotinas. Sei que facilmente poderíamos enlouquecer desta maneira, mas também há a Orsi, a nossa filha, e protegemo-la com todo o nosso amor, ajudamo-la. É a única coisa que nos faz continuar”, acrescentou a mãe do jogador húngaro.