“Foi um dos debates mais civilizados que aqui tivemos”. A frase partiu de Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, e reconheceu uma evidência. Mário Centeno veio ao parlamento pela segunda vez em menos de uma semana para responder sobre a auditoria da EY que identificou os negócios ruinosos do banco público entre 2000 e 2015. Mas as palavras mais ásperas gastaram-se quase todas no debate de atualidade da passada quinta-feira. Esta quarta-feira, na Comissão de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa, foi mais um recapitular da matéria dada. Mas com algumas certezas: a versão final da auditoria vai mesmo ser entregue ao parlamento e vai mesmo acontecer uma terceira comissão de inquérito à Caixa.
https://observador.pt/2019/01/30/mario-centeno-responde-aos-deputados-sobre-auditoria-da-caixa-geral/
Vamos por partes. O ministro insistiu mesmo em algumas das ideias que já tinha deixado aos deputados no plenário:
- Este governo foi o primeiro em 20 anos a pedir uma auditoria deste tipo às contas da Caixa. E neste período “houve sete governos e oito ministros das Finanças”.
- O anterior governo injetou 1.650 milhões de euros na CGD, algo que era insuficiente, mas não quis aprofundar as razões para os problemas do banco público.
- A direita queria privatizar a Caixa Geral de Depósitos. Ou seja, como recordou o PS, queria fazer o mesmo que fez com os CTT.
Por outras palavras, falou-se do passado da Caixa, trocaram-se acusações sobre quem pediu e não pediu auditorias às contas do banco público, e, sim, houve opiniões mais acaloradas em vários quadrantes. Mas foi pouco. O verdadeiro elefante não estava ainda na sala: a versão final do relatório de auditoria da EY só chega ao parlamento até ao final da semana. A presidente da comissão de Orçamento e Finanças ainda deu a esperança: “chega provavelmente ainda hoje”. Mas poucos foram os deputados que se entusiasmaram. O “sumo” do que se passou na CGD já se sabia, até já foi contado em livro. Os nomes e os números relativos aos grandes devedores foram confirmados a 21 de janeiro, quando comentadora e professora universitária Joana Amaral Dias divulgou na CMTV uma versão preliminar da auditoria. Os trabalhos subsequentes da comunicação social escalpelizaram o resto.
E o documento que vai agora chegar aos deputados até virá “expurgado” de qualquer informação que a Caixa considere estar abrangida pelo segredo bancário. É o caso dos nomes dos clientes que receberam os créditos ou outra informação que possa ser essencial para o responsabilidades internas e individuais. Portanto, o que discutiram os deputados na comissão desta terça-feira?
Inquérito parlamentar à Caixa Geral de Depósitos, o terceiro em três anos, deve avançar
Quase todos os partidos deram como um dado adquirido a realização de uma nova comissão parlamentar de inquérito para apurar responsabilidades sobre a gestão da Caixa entre 2000 e 2015, anos em que foram tomadas as decisões de concessão de crédito que provocaram prejuízos avultados e obrigaram a uma recapitalização recorde do Estado. O cenário foi colocado em cima da mesa pelo PSD. Esta terça-feira, o PS aceitou o desafio, desde que sejam cumpridas duas condições — uma delas é a entrega da auditoria e a outra é a promulgação da lei que obriga os bancos que foram ajudados a dar informação sobre devedores e que depende do Presidente da República.
No final do dia, o CDS avançou já com a decisão de apresentar uma proposta para uma nova comissão de inquérito. O texto da proposta dos centristas inclui um ponto que pode implicar chamar novamente ao parlamento personalidades que foram ouvidas no primeiro inquérito parlamentar, sobretudo ex-gestores do bancos, um dos quais — Armando Vara — começou agora a cumprir pena pela condenação no caso Face Oculta. Em causa está o objetivo de averiguar as contradições entre as declarações proferidas na I comissão parlamentar de inquérito à recapitalização da CGD e as informações do relatório de auditoria da EY, nomeadamente sobre a concessão e renovação de créditos.
Na audição ao ministro das Finanças, a deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua explicou o que mudou para o partido apoiar nova iniciativa.
- Existe agora a auditoria aos créditos problemáticos
- A Caixa hoje está recapitalizada e segura.
“Nada impede que se possa fiscalizar a Caixa e tirar todas as responsabilidades. E esse papel pode e deve passar por uma comissão de inquérito”, disse a deputada.
O próprio Mário Centeno pareceu aceitar a inevitabilidade, mas deixou avisos: “Aquilo que dizemos aqui (no Parlamento) tem impacto na vida destas instituições, exceto nas que não já existiam. Era muito mais fácil falar sobre o Banif e o BES. Podemos falar sobre a Caixa, mas temos de o fazer com responsabilidade”.
Apenas o PCP, que teve a iniciativa de chamar o ministro das Finanças à comissão de orçamento e finanças, não deu sinais claros de apoio a esta nova comissão de inquérito. Duarte Alves defendeu o apuramento de responsabilidades a fazer pela própria Caixa Geral de Depósitos e pela investigação judicial. Já a responsabilização política tem sido feita nos últimos anos.
Auditoria à gestão vai chegar ao Parlamento nos próximos dias
O relatório final da auditoria independente promovida pela EY irá ser entregue ao Parlamento depois de Procuradoria-Geral da República ter autorizado a sua divulgação, ao abrigo da reserva do segredo de justiça. As garantias foram dadas à presidente da comissão de Orçamento e Finanças pelos presidentes da CGD, Paulo Macedo, e pelo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. Teresa Leal Coelho revelou aos deputados que a auditoria chegará até ao final da semana, “provavelmente até ao final do dia”.
Mas o documento será “expurgado” de informação que seja considerada sensível do ponto de vista do sigilo bancário. O que deixa no ar a dúvida: até que ponto essa limpeza de dados confidenciais pode dificultar o pretendido apuramento de responsabilidades individuais, nomeadamente a nível de órgãos de gestão, controlo e fiscalização do banco? Um problema que poderá ficar mitigado com a promulgação pelo Presidente da República da lei que dará às comissões de inquérito acesso informação sob sigilo bancário.
Centeno deixou ainda a certeza de que “ninguém neste governo tem qualquer problema com a questão da auditoria nem com as consequências que esta auditoria possa trazer”, lembrando que os atos investigados são anteriores a este Governo, entre 2000 e 2015.
Houve má gestão, teve custos e há responsabilidades políticas, para além de criminais ou civis
Mesmo sem conhecer o relatório final da auditoria da EY, a avaliar pelo que afirmou ao Parlamento no ano passado e que nunca corrigiu, o ministro das Finanças reconhece que houve má gestão no banco do Estado e que essa má gestão teve custos.
Centeno distinguiu os vários níveis de responsabilidades em causa nesta auditoria a como foram decididos os créditos que provocaram mais imparidades. Informou que a Caixa terá um “papel muito ativo no apuramento das responsabilidades, criminais e civis e o mesmo se espera nas responsabilidades a nível de contraordenações “. Daí que o envio da auditoria ao Banco de Portugal e à Procuradoria-Geral da República e à instrução dada à gestão do banco para prosseguir com responsabilidades civis (pedidos de indemnização) contra eventuais responsáveis e para se constituir como assistente no inquérito criminal em curso.
Mário Centeno reconheceu que também há também responsabilidades políticas, mas considerou que não compete ao Governo fazer essa avaliação. Essas responsabilidades, afirmou, devem ser avaliada nas eleições que o têm feito. E pediu ainda ao parlamento que tenha atenção os factos a analisar e cuidado com a instituição
Já a deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua foi mais concreta na identificação de potenciais responsáveis e até usou uma expressão de Centeno invocou no debate parlamentar da semana passada sobre o tema. “Não se trata de voyerismo, trata-se saber o que se passou (…) Se houve interferência política dos governos, nomeadamente do PS, o país tem o direito de saber. Se houve complacência nos órgãos de gestão e fiscalização, o pais tem o direito de saber. Se houve intervenções de gestores que hoje estão em outros altos cargos, o país tem direito a saber. E para isso precisamos de ter nomes, empresas e escrutínio”.
Leitão Amaro e Centeno protagonizam o momento mais tenso
O deputado do PSD tentou colar os negócios ruinosos da Caixa Geral aos governos socialistas, nomeadamente nos tempos de José Sócrates e Armando Vara. Mas foi mais longe: acusou Mário Centeno de ter tentado travar os esclarecimentos e de ter mantido o relatório na gaveta, durante meses.
Estamos aqui hoje, disse Leitão Amaro, porque alguém deu um relatório de forma não adequada. “Porque esteve três anos a tentar travar este esclarecimento? Em 2016 decidiu meter 5.000 milhões e só três anos depois é que chega a auditoria”, acusou.
Centeno não se ficou. O contra-ataque visou a governação do PSD/CDS-PP durante o período da troika e até chegou a insinuar que Leitão Amaro era um deputado “frustrado”. “Acho extraordinário! Só estamos aqui a discutir isto porque este g+Governo pediu esta auditoria. Nos últimos 20 anos, o PSD esteve sete anos no poder e nunca o fez”. “Durante todo esse tempo não teve curiosidade? Não vale a pena estar aqui a inverter o ónus. Ou então é um deputado frustrado, porque queria a informação e não lha davam”, disse o ministro.
E quanto a Sócratres e a Armando Vara? “Pelo menos sete dirigentes do seu partido passarem pela administração da Caixa [nos últimos 20 anos]. Algum deles poderia ter tido a grande iluminação de fazer o que estamos a fazer agora”, acusou Centeno.
Na ronda seguinte, Leitão Amaro foi buscar outro pormenor do passado de Mário Centeno, para fechar a questão: “Aqui entre nós, só um de nós os dois estava no Banco de Portugal. Eu ainda não estava no parlamento [entre 2005 e 2010], mas o senhor ministro estava no Banco de Portugal”, acusou Leitão Amaro.
A Caixa não volta a receber dinheiro do Estado
Foi uma garantia deixada pelo secretário de Estado Adjunto e das Finanças. Ricardo Mourinho Félix afirmou que depois da recapitalização feita em 2017, a Caixa é “lucrativa e viável”. Mas também alertou que o banco do Estado não voltará a ter uma injeção de dinheiro público, “porque não precisa e porque não pode”. O que foi negociado em 2016 e concretizado em 2017 — uma recapitalização de 4.000 milhões de euros — foi único.
Mário Centeno já tinha dado nota dos bons resultados que o banco está a ter, acima em alguns indicadores, das metas negociadas com a Comissão Europeia. O ministro das Finanças foi várias vezes questionado, mais à esquerda do que à direita, sobre se o banco do Estado devia ser gerido como um banco privado. Isto por causa da redução do número de balcões, de trabalhadores e do aumento das comissões. O ministro lembrou que não houve despedimentos na Caixa e que a injeção de fundos públicos também foi um investimento público. Centeno reafirmou a expetativa de o acionista de que a Caixa devolva já este ano o investimento feito, “sob a forma de um banco estável, mas também através de dividendos”.