É certo que o cânone literário podia dar algumas pistas. Se os escritores são bons, devem escrever bem. No entanto, como o século XX se empenhou em mostrar até à exaustão, é possível ter um forte poder evocativo, deslizar pelas páginas a mais profunda filosofia, construir personagens originalíssimas, e mesmo assim destratar as regras mais elementares da língua. O caso de Eça de Queirós é óbvio; por muito apetitosas que as suas mulheres fiquem envoltas em cache-nez ou na intimidade das suas chambres, dificilmente podemos dizer que os cache-nez ou as chambres são bom português – para dizer a verdade, não são português de todo.
Assim, do respeito pela língua nasce uma classe, que não é forçosamente literária, com um papel muito peculiar nas letras de um país. Os puristas da língua, uma mistura de filólogos, linguistas, poetas e curiosos, são uma classe pequena mas muito activa. São polícias zelosos da nossa linguagem e gramática, guardas fronteiriços com olho de falcão, que não deixam passar estrangeirismos de espécie alguma, espiões dos costumes mais secretos dos povos, estudiosos das lógicas gregas e latinas, colecionadores de abonações eruditas e filtros apertados de uma língua limpidíssima.
Não é preciso ser filólogo ou linguista para ser um verdadeiro purista da língua; às vezes, estes misteres são até um empecilho. Vemo-lo nos filólogos habituados a anotar tudo o que é costume como certo, mesmo os vícios antigos que contrariam o espírito natural da língua, e vemo-lo nos linguistas, concentrados no espírito da língua, e por isso incapazes de aceitar as variações com que o povo foi complexificando a língua. Isto é, a posição de Evanildo Bechara na sua Gramática, que ensina e classifica o modo brasileiro de trocar os pronomes possessivo – pedir, por exemplo, “me escreve” – é legítima do ponto de vista do observador. Bechara não está a criar a língua, está a anotar aquilo que os seus falantes fazem; no entanto, isto impede-o de ser um purista.
Ao mesmo tempo, a ideia de Cândido de Figueiredo de que “ramalhete” devia ser purgado da nossa língua (já que “-alho” é um aumentativo e “-ete” um diminutivo, o que cria um diminutivo de um aumentativo) e substituído por “ramilhete” esbarra contra uma das paredes mais sólidas da nossa língua. O ofício de purista implica um esforço constante de correcção da língua e de aceitação das suas inovações indispensáveis (no modo, claro, que mais se adeque ao espírito da língua). Não é, por isso, um método sistemático. Os grandes puristas – Cândido de Figueiredo, Vasco Botelho do Amaral, Sá Nogueira — deixaram-nos dicionários de erros e problemas de linguagem, anotações, textos sobre problemas pequenos, isto é, obras de particularidades, lavor de coca-bichinhos.
Os puristas têm, assim, um tipo de livros próprio, preocupações próprias e modelos únicos. De Cândido Lusitano a Vasco Botelho do Amaral, ou ao blogue Linguagista, de Helder Guégués, o purismo da língua constitui uma actividade com regras próprias que vale a pena conhecer.
Os estrangeirismos
Uma das primeiras preocupações do purista é a preocupação com os estrangeirismos. Faz sentido: se a ideia passa por falar bom português, convém pelo menos que se fale português. Cândido de Figueiredo, durante vários anos, alimentou nos jornais uma coluna sobre estrangeirismos que, a partir de peças da imprensa ou da literatura, ia identificando os estrangeirismos mais bárbaros e propondo alternativas. Nalguns casos, ganhou a batalha — já quase ninguém diz “robe-de-chambre” por “roupão”, ou “adresse” por “morada” – noutros travou uma luta inglória – por muito que quisesse o purista, dificilmente voltaremos a chamar Casa de Pasto aos Restaurantes, ou hospedarias aos hotéis.
No entanto, estes são apenas os casos em que o estrangeirismo é mais óbvio. Há outros que nos aparecem tão discretos e ao mesmo tempo tão comuns, que só com a ajuda de Cândido de Figueiredo conseguimos sinalizá-los. “Arranjar”, galicismo para a palavra “consertar”, “cave”, também forma francesa que em português poderia ficar, pelo menos, “cava” (característica do que é fundo), “constatar” em vez do português “verificar”, “conduta” em vez do luso “comportamento”, enfim. Os casos são muitos, e os mais curiosos são aqueles em que uma palavra que existe em português assume o significado que uma palavra semelhante tem noutro país. Nos últimos anos, é normal ver “provas” descritas como “evidências” (do evidence inglês, quando para nós “evidência” é apenas aquilo que é óbvio), ou ver “eventualmente” tomar o significado inglês, de algo que acabará por acontecer, e não de algo que pode acontecer ou não.
Os estrangeirismos, até os puristas o reconhecem, são necessários para uma língua. A questão que atormenta o purista não é a existência de estrangeirismos; claro que, se não temos palavra para “avalanche”, porque em Portugal a neve é rara, teremos de a ir buscar a uma língua que a tenha (embora “alude” fosse mais próximo da nossa língua); ou, inventada a internet, naturalmente surgirá um neologismo que a identifique; a questão que atormenta o purista são os estrangeirismos para palavras que já existem em português – como “detalhe”, quando temos “pormenor”, ou pior, “fetiche”, palavra que os franceses tiraram do português “feitiço” (Rodrigues Lapa dixit) e que nós recuperámos abastardada – ou a formação dos estrangeirismos necessários.
Se, de facto, vamos comer “sandwiches”, que pelo menos comamos sanduíches com as nossas letras. Estas são as verdadeiras preocupações do purista, de tal modo que levaram o Dr. Castro Lopes a escrever um livro sobre Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis. A tese do nosso purista é a de que, mesmo quando são necessários os estrangeirismos, se deve ir buscá-los ao grego e ao latim, para manter o étimo e a lógica próprios da língua. Assim, em vez de “isolado”, deveríamos usar o muito mais gráfico “insulado”, que vem de “insula”, “ilha” em latim. Claro que a tineta do Dr. Castro Lopes o leva a alguns exageros. Quem, com o mínimo de bom-senso ou vontade de ser compreendido, substitui o festivo “charivari” por “penilúdio” (junção de “poena” – “pena” – e “ludus” – divertimento)?
Em todo o caso, os estrangeirismos são bastante traiçoeiros. Veja-se a indignação do mesmo Castro Lopes com o uso da palavra “creche” para descrever as escolas de crianças. É que, como ele explica, se traduzirmos a palavra, o resultado é o muito mais animalesco estábulo…
Os erros de linguagem
Os puristas, no entanto, não se concentram apenas nos estrangeirismos. Há uma série de erros e problemas de linguagem – redundâncias de vária ordem, contradições, palavras mal formadas – que não escapam aos puristas. É, aliás, a esses erros e problemas que são dedicados os completíssimos dicionários de Vasco Botelho do Amaral ou de Sá Nogueira.
A gama de erros é enorme. Desde os óbvios “outra alternativa” – se é “alter” já é outra – e “sob este ponto de vista”, quando é claro que não há nada debaixo de um ponto, muito menos debaixo de um ponto de vista – ao sempre confuso “ter que ver”, que tanta gente substitui à francesa por “ter a ver”, a gama de erros é enorme e tanto mais interessante quanto os vários puristas consideram erros diferentes de acordo com a sua filosofia. Vasco Botelho do Amaral, por exemplo, trava constantemente uma batalha pela precisão da língua. Daí que considere o gerúndio, muitas vezes, um mau uso do português. Se “escrevendo” tanto pode significar ao escrever, algo temporal, como um modo — “resolvo isto escrevendo uma carta” – o seu uso torna a língua menos precisa.
Por outro lado, filólogos como Cândido de Figueiredo ou Evanildo Bechara gostam de procurar, nos escritores de reputação gramatical mais sólida ou no falar do povo, abonações para usos mais raros da língua. É assim que Evanildo Bechara legitima o uso de um adjetivo pelo advérbio de modo. Aparece em Garrett, por exemplo, a frase “faço isto frequente”, em vez de “faço isto frequentemente” e alguns puristas consideram este um uso legítimo. No entanto, Cândido de Figueiredo rebela-se contra ele: “vou só fazer isto”, explica ele, não se deve dizer. Na verdade, as pessoas querem dizer o advérbio de modo – “vou somente fazer isto” e usam o adjectivo. Também o mesmo Cândido de Figueiredo se irrita com o mau uso do sufixo “-aria”. Se, de facto, em muito casos o usamos bem – padaria, charcutaria – noutros usamos (mal) à estrangeira, “-eria”. “Pizaria” está bem, mas “pizeria” está mal. O problema é que, pela lógica, nas bandas passaria a haver uma muito mais esquisita “bataria” em vez da “bateria”.
Quem são os puros?
Um dos jogos preferidos do purismo é a exibição de abonações. Para mostrar que o purismo é uma ciência de campo, a apresentação de exemplos tirados da história da literatura é um dos pontos mais importantes da argumentação. Ora, isto leva a que haja uma espécie de hierarquia entre as referências literárias no que toca à segurança da língua. É certo que todos os puristas gostam de mostrar um deslize de Camilo, ou uma cedência de Herculano ao estrangeirismo; no entanto, a palavra dos escritores está hierarquizada por graus de pureza.
É claro que Eça de Queirós, em matéria de abonações linguísticas, é mais defeito do que vantagem; outros, porém, têm na pureza linguística a salvação do esquecimento. Por muito que fosse considerado no século XVIII, a verdade é que Filinto Elísio tem hoje muito mais reputação entre os puristas do que entre o resto da comunidade literária. Herculano, Filinto, Castilho, são considerados autores seguríssimos; Camilo também é seguro, embora tenha mais deslizes. Aquilino tentou criar a imagem de puro, mas a gramática vulgar e uma certa confusão entre regionalismo e pureza, ou entre língua e vocabulário, não lhe dão o estatuto desejado; para trás do século XVII, o estatuto é mais ou menos intocável.
Frei Luís de Sousa, Amador Arrais, Camões, D. Francisco Manuel de Melo, Rodrigues Lobo, Sá de Miranda, são considerados quase fautores da língua, pelo que estão para lá da pureza. Curiosamente, o estatuto de pureza também vai variando com os séculos. Numa resposta aos seus detractores, Eça de Queirós lamenta não usar apenas palavras que vêm “no Lucena”; ora, este Lucena é João de Lucena, autor de uma vida do Padre Francisco de Xavier, que no século XIX tinha a coroa de grande purista da língua portuguesa. Camilo também o refere quando evoca os mais puros, Herculano idem e, no entanto, a modernidade, mesmo a mais purista, não parece dar-lhe a mesma importância.
Talvez um dia o recupere, como em França Barthes recuperou o Marquês de Sade, defendendo que o infame marquês devia ser usado nas primárias como exemplo de boa gramática. Porque isto de purismo, passe o paradoxo, nem aos mais impuros está vedado.