Título: “Em Tudo Havia Beleza”
Autor: Manuel Vilas
Editora: Alfaguara

Antes de mais é importante vasculhar como é que está o leitor que se prepara para ler Em Tudo Havia Beleza, de Manuel Vilas: se está bem e minimamente apaziguado com o chão acidentado da existência. O livro, que no final do ano passado apareceu no topo das escolhas de best of de várias publicações espanholas, podia chamar-se “Em tudo havia dor”. Uma dor amarela, no entendimento do autor. Dor de perder os pais, do divórcio, de perceber as sérias dificuldades de captar a atenção de um filho adolescente, dilatadas após uma separação. A epígrafe, de Violeta Parra, é enganosa. Se é verdade que aqui há “riso” o que mais prevalece é o “pranto”. O pior dos prantos: aquele que não se consegue concretizar. O choro de quem não consegue chorar.

Vilas escreve na primeira pessoa sobre a sua biografia. E inicia o movimento com uma sentença inequívoca: “Oxalá fosse possível medir a dor humana com números claros e não com palavras incertas”. E é com palavras incertas, mas destemidas, que vai nomeando o que lhe foi acontecendo, a forma como interpretou o que lhe foi acontecendo e qual o balanço que faz disto de estar vivo.

“Todo o homem acaba, mais dia menos dia, por enfrentar a insignificância da sua passagem pelo mundo. Há seres humanos capazes de o suportar”.

Vilas não é um deles.

O registo, pleno de aforismos, de frases bem acabadas, não é fácil de segurar. Mas o poeta e autor do romance España aguenta-o. Porque, mais do que pose e vontade de efeito, o que fica deste testamento caótico é a sua segura vulnerabilidade à perda e à tragédia de tudo sentir com uma intensidade quase inimaginável. É como se sofresse por tantos e ao mesmo tempo mantivesse a fria lucidez de topar as fraquezas humanas:

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“Por muito mal que nos corra a vida, há sempre alguém que nos inveja. É uma espécie de sarcasmo cósmico”.

Muitos já o intuíram mas é tarefa do escritor registá-lo. Outra: “Ocultamos o salário, mas é a única coisa confessável que temos. Quando descobrimos o salário de alguém, vemo-lo nu”. É mesmo isso. É cada vez mais isso. “Deixar resolvidas as coisas aos filhos e pirarmo-nos, esfumarmo-nos. Desvanecemo-nos em paz e deixarmos tudo resolvido aos nossos filhos, morrer tranquilo é isso”. Mesmo quem não é pai, entende a pertinência do que é apontado.

De todas as agonias descritas a que prevalece é esta: a familiar. A família e o modo como se relacionou e vê os seus pais constituem aqui um refrão. Numa altura em que os laços de sangue são questionados em nome de uma miríade de afinidades, Vilas define-se como filho de um homem e de uma mulher que não esquece e que tenta descrever com a maior das precisões. Os pais são fantasmas que lhe aparecem quando está na casa de banho a escovar os dentes. Recorda a ternura com que a mãe o ajudava a fazer as malas quando partia de Barbastro para Saragoça. Faz declarações de amor destas:

“Os meus pais terem sido tão bonitos é o melhor que me aconteceu na vida”.

No interior do desamparo há instantes com um humor trágico. A ida do escritor a uma refeição oficial com os reis de Espanha não deixa de ser hilariante. A falta de adequação ao momento protocolar fica definida por um pormenor: “Penso em mim mesmo, neste instante, como o homem da gravata cujo nó foi feito por outro homem”. Tudo termina com o sentimento de terror e angústia diante da aparente harmonia da realeza.

Há um pano de fundo nesta narrativa pessoal: a História de Espanha. E esse facto deverá, com certeza, ter pesado no facto de haver sido tão incensado pela crítica do seu próprio país. A pobreza versus riqueza é várias vezes repetida. O filho vê-se a si próprio e à sua mãe como vítimas do anseio de prosperidade.

“Pobre foi o meu pai,
muito pobre,
e o pai do meu pai
e pobre sou eu”

O futebol também ajuda a explicar uma boa parte da espessura do país: “Se o Real Madrid e o Fútbol Club Barcelona se desvanecessem, Espanha transfomar-se-ia num buraco negro. A gravidade de Espanha são dois clubes de futebol”.

É justo dizer-se que o tom, repetitivo, desapossado de peripécias, pode, a certa altura, num volume de 400 páginas, fatigar o leitor. Aconselha-se a viagem ao fim da noite. É raro encontrar o essencial da condição humana, exposta com os termos mais certeiros, de uma forma tão desmaquilhada.